Cássia Eller mudou a cara da música brasileira com rebeldia e potência vocal

Cássia Eller cantora brasileira

 

*por Raphael Vidigal

“Lady of silences
Calm and distressed
Torn and most whole
Rose of memory.” T. S. Eliot

Cássia Eller tinha 19 anos quando compôs “Flor do Sol”, parceria com Simone Saback. Mas só agora, na data alusiva aos 50 anos de nascimento da cantora (morta em 2001, aos 39, em circunstâncias pouco esclarecedoras), a canção vem à tona.

A inédita música pode ser ouvida no iTunes da gravadora Universal Music. Gravada em Brasília pela própria Cássia, residente na capital à época, foi finalizada, este ano, em estúdio, com a participação de músicos associados ao universo da intérprete.

OBSCURA
Embora tenha enfileirado uma série de sucessos, especialmente no ano de sua morte, quando gravou o Acústico MTV, e mesmo um pouco antes, com discos antológicos produzidos por Nando Reis e Wally Salomão, a exemplo de “Com Você…Meu Mundo Ficaria Completo” e “Veneno Antimonotonia”, o lado compositor da cantora sempre figurou na obscuridade.

Não por motivos fúteis, afinal, com o lançamento de “Flor do Sol”, somam apenas quatro o número de composições da propagadora de versos de Renato Russo, Cazuza, Lobão, Riachão, Nando Reis, Carlinhos Brown, Chico Buarque, Marisa Monte, e tantos outros.

Afora isso, o fato de que todas estão presentes nos primeiros álbuns da artista, de pouquíssima divulgação e alcance comercial, tanto durante a vida quanto após a partida, pesam, e muito, para o desconhecimento de que Cássia Eller, além de primorosa cantora, também compunha.

LOUCURA
A qualidade desses versos e melodias, escritos em período complicado da vida de Cássia, imersa em mundo de excessos e descobertas típicas dos primeiros anos de muitas adolescências, ainda está para ser discutida.

O certo é que transigia numa pulsão, loucura e coragem que marcou o início da carreira, nada meteórica e muito truncada, daquela que viria a se tornar febre nacional com atitudes opostas frente às câmeras. No palco, literalmente “bicho solto” a mostrar os seios e rebolar, debochada, para a plateia. Em entrevistas, outro bicho, do mato, com medo de tudo e medindo as (poucas) palavras.

ESTRANHAS
No primeiro disco de Cássia Eller, intitulado com o nome da intérprete, de 1990, os versos que ela propagava vinham da “Vanguarda Paulista”, movimento ressuscitado recentemente, com muita substância, por Zélia Duncan, que também viveu na Brasília de Cássia e tem, como mérito, conceder a essas canções “estranhérrimas”, nas próprias palavras, a possibilidade de tocarem nas rádios.

Itamar Assumpção, Mário Manga, Arrigo Barnabé, Hermelino Neder, Marcus Miller, estão todos lá, enchendo com letras ácidas e sons dissonantes o encarte. No meio deles, a dona do disco e da voz assina “Lullaby” com Márcio Franco. Não é música palatável nem roça o ‘pop’, o que, portanto, não assusta que jamais tenha figurado nas listas das mais ouvidas. Nem é a esse espaço que pertence, o que não lhe tira os méritos enquanto canção, de ousadia, da artista insipiente, tateando, sem o menor cuidado, os primeiros passos.

MARGINAL
Na continuação da carreira, ainda sem dar graça às luzes da grande mídia, Cássia Eller não poderia dar outro nome ao trabalho, senão de “O Marginal”, lançado em 1992. Era intolerante álbum, agressivo, irônico, que ao invés de tratar da homossexualidade como em “Rubens”, música de Mário Manga gravada no anterior, arregaçava as mangas contra preconceitos de cunho social e econômico.

Pouco econômica nos gestos e urros, ásperos e extremamente puros, sem a limpidez adquirida com o passar dos anos – no entanto conservando a tragédia do canto desesperador de Cássia, herdado com veracidade de Cazuza e Angela Ro Ro, mas mantenedora de identidade própria e única – a intérprete escancarava ao mundo revoltas e desejos, medos e angústias, na letra que dá nome ao disco, com Hermelino Neder, Zé Marcos e Luiz Pinheiro e em “Eles”, parceria com o último e Tavinho Fialho.

Mas sejamos justos, não lhe ouviram, até que fosse feita de menos sal e mais açúcar. Hoje, a “Flor do Sol” renasce, certamente mais encorpada, embora já possua 50, e não mais 19 anos. O reconhecimento vem com o tempo, diria, magoado, o filósofo Nietzsche.

Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 10/12/2012.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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