*por Pedro Bahia (autor do blog “Carneiros Comem Arbustos”)
“Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se” João Cabral de Melo Neto
Toda conversa boa se inicia com uma apresentação, né?! Pois bem, me chamo Pedro Henrique e tenho 32 anos. Sou formado em publicidade, apaixonado por fotografia, música, cinema, séries e Fuscas. Fui convidado pelo meu querido amigo e, curador deste site, Raphael Vidigal, a escrever sobre “Bacurau”, filme brasileiro premiado no Festival de Cannes, Festival de Lima e também no Festival de Munique. Uma missão e responsabilidade gigantescas falar sobre este filme tão importante, mas que foi aceita como um grande desafio. ATENÇÃO, PODE CONTER SPOILER!
Me perdoem o palavreado, mas não tem como começar sem antes dizer que “Bacurau” é um PUTA FILMAÇO! Digno de todos os prêmios que ganhou e também dos que foi indicado, mas acabou não trazendo pra casa (vai saber o porquê?). O filme é uma mistura de gêneros e se passa em uma pequena cidade, fictícia e que intitula o longa, no oeste de Pernambuco. Logo de cara, a trama apresenta traços de como será a narrativa da história contada: “Bacurau. Se for, vá em paz”, diz a placa na entrada da cidade. Apesar de conter características de faroeste, drama, fantasia e ficção científica, o filme traz elementos realistas (quase documentais), apresentando uma alegoria implacável do atual momento sócio-político vivido no Brasil. Propondo reflexões e questionamentos dos mais variados possíveis.
Ainda nos primeiros minutos da história, os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles já trazem certa estranheza aos que assistem com um acidente envolvendo um motociclista e um caminhão carregado de caixões vazios. Isso mesmo, caixões, que ficam espalhados pela estrada esburacada que dá acesso à cidade de Bacurau. São vários caixões no caminho e, na dúvida entre “buracos e caixões”, o caminhão pipa, que leva uma das personagens principais do filme, acaba passando por cima deles e destruindo alguns caixões.
Dentro do caminhão pipa, a caminho de Bacurau, são apresentados dois personagens: Teresa (filha de Plínio – professor da escola da cidade) e Erivaldo (motorista e dono do caminhão). Durante os diálogos iniciais, eles introduzem a figura de Lunga, um morador da cidade que, aparentemente, é um justiceiro, procurado pela polícia e exilado em algum lugar ainda desconhecido. O que mais chama a atenção é que em nenhum momento os personagens definem o gênero de Lunga: ora usam pronomes femininos, ora pronomes masculinos, o que gera ainda mais curiosidade e interesse pelo personagem, que é de extrema importância para a história de Bacurau. Durante esse diálogo entre Erivaldo e Teresa, eles trazem à tona um dos dramas vividos pela cidade, relacionado ao abastecimento de água que foi privatizado, gerando transtornos e vários problemas para os moradores da cidade, que vivem em situação precária e com total descaso do governo.
O filme segue com as dúvidas e curiosidades a respeito dos costumes desta “pacata cidade” quando Teresa chega ao centro de Bacurau. Ela é recebida por Damiano que, ainda com a expressão séria, pede que ela abra a boca e coloca uma semente em sua língua, quase como num ritual religioso, onde um padre oferece a hóstia a um fiel. Apenas depois deste momento eles trocam sorrisos e se abraçam. Teresa vinha para a cerimônia de velório de sua avó e matriarca de Bacurau, Dona Carmelita, além de trazer um carregamento de vacinas para a cidade. Durante o cortejo, que conta com a participação de todos os moradores da cidade, a caminho do cemitério, a população canta uma música que tem ares de hino ou um cântico de guerra, daqueles que bardos entoavam em histórias épicas, trazendo mais um pouco dos elementos que se veriam durante todo o filme: a união dos moradores de Bacurau, que, mais adiante, se colocariam em uma posição de resistência aos mandos e desmandos governamentais que ainda estariam por vir.
Falando em mandos e desmandos daqueles que são eleitos e inaptos aos respectivos cargos, é muito clara a crítica do filme quando mostra o prefeito de Bacurau, Tony Júnior, visitando a cidade em um momento pré-eleição. Cenas fortes, ilustrações que seriam cômicas se não fossem trágicas e terrivelmente verdadeiras. O descaso com a educação e cultura, quando ele entrega uma doação de livros para a escola da cidade em um “caminhão caçamba basculante” (aqueles usados para transporte de areia, que levanta a caçamba e a carga escorre caindo por uma abertura na parte traseira), literalmente como se estivesse descartando aquela “carga”, livros jogados sem cuidado algum e vários sendo destruídos neste processo. O descaso com a saúde, entregando medicamentos controversos, perigosos e de procedência duvidosa, que causam dependência e afetam o sistema cognitivo.
O descaso com a democracia, quando começam críticas e questionamentos, um discurso vago e evasivo, insuficiente, e diante de uma oposição questionadora, ele aumenta o som do seu jingle na intenção de calar a voz daquele povo. Descaso com a humanidade, levando uma garota de programa à força; entregando sua própria gente para estrangeiros brincarem de guerrinha e dizimarem uma cidade inteira, inclusive do mapa; entregando doação de alimentos fora do prazo de validade, tratamento que não se dá nem a um animal e, pra finalizar, é claro, não faltou a doação de caixões para a cidade. Um prenúncio das suas intenções.
O filme evolui mesclando cenas de humor, suspense, terror gore, ação e desenrolando a história de uma forma terrivelmente revoltante quando contava o panorama geral e desenvolvia as ações dos forasteiros naquela cidade. Em contrapartida, quando a história dos moradores de Bacurau era o foco, uma energia de união, resistência, resiliência e esperança inunda o nosso espírito. Nos enojamos ao ver o desdém dos “aventureiros” com a cultura local e com o museu da cidade (diga-se de passagem, que, se tivessem tido este interesse, pouparia os forasteiros da surpresinha guardada para a parte final do filme). Nos animamos com a força de um povo que tem a luta pela sobrevivência como cicatriz exposta, sem deixar de lado a alegria de viver. Mesmo frente a grandes desafios, não se vendem por qualquer dinheiro se aquilo for calar seu canto e sua melodia.
O grande clímax do filme começa com Damiano cuidando de suas sofridas plantas, em pleno sertão nordestino, totalmente nu. Segue com um tiro preciso e perturbador de Damiano, ainda nu, armado de um Bacamarte (arma do século XVIII), contra um dos aventureiros que não vinham em paz. Momentos depois, outra aventureira é abatida, desta vez pela esposa de Damiano, também nua, e também empunhando um Bacamarte. Uma reação em cadeia, eclodida quando os moradores de Bacurau entenderam que estavam, covardemente, sob ataque. Ação coordenada e unida com um só objetivo: sobreviver! Sobrevivência que não viria sem luta ou sem baixas. Sob o efeito de poderoso psicotrópico (a semente dada a Teresa por Damiano no começo do filme), os moradores de Bacurau se transformam em um organismo vivo, como que produzindo anticorpos para deter e eliminar invasores mal-intencionados, lutam e alcançam a sobrevivência.
Como cereja do bolo e gran finale, a celebração em honra à vida daqueles que foram perdidos por conta de ações políticas desastrosas, que são desmascaradas e vêm à tona graças à resistência e união de um povo forte, que consegue superar a extinção iminente e desabafa no discurso e na voz do DJ Urso ao fim do filme, iniciando o ritual de caminhada e “redenção” de um burro.
Enfim, falar de “Bacurau” não é uma tarefa fácil, muito menos curta ou rápida. O filme gera muito questionamento, muita reflexão e traz para a camada consciente muitos sentimentos que poderiam estar adormecidos. Portanto, é tema para mais de um texto, mais de um podcast e mais de um vídeo. Merece e tem conteúdo para ser analisado e discutido sob mais de um aspecto, sob mais de um viés. Deixei de falar de personagens importantíssimos como Pacote (ou Acácio), Domingas, Dona Carmelita, Plínio, os gringos e vários outros. Deixei também de falar de passagens importantes do filme, mas aí, tudo viraria uma dissertação de mestrado.
“BACURAU” é um PUTA FILMAÇO e merece ser visto e revisto para absorver cada detalhe, que são muito importantes e fazem total diferença. Espero não ter dado muito spoiler e despertado a curiosidade para quem ainda não viu, e que tenha feito justiça à qualidade do filme para aqueles que já assistiram.
Fotos: Victor Juca/Reprodução.