As formas de alucinação no filme ‘Pinóquio’ de Guillermo del Toro

*por Raphael Vidigal

“Saber-se
fonte única de si
alucina.” Ferreira Gullar

Existem diversas formas de suspender e ultrapassar a realidade, mas irei me deter em apenas três: arte, religião e drogas. As três instâncias oferecem possibilidades de alucinação, ou seja, de transcender o aspecto primário e concreto da realidade para atingir um plano que se coloca em outro lugar, não necessariamente acima, mas, certamente, externo. O filme “Pinóquio”, dirigido pelo mexicano Guillermo del Toro – e, cabe lembrar, o México foi a pátria escolhida pelo cineasta surrealista Luis Buñuel –, oferece boas oportunidades de abordar o tema da alucinação a partir dessas três instâncias aqui já citadas.

Adaptada do famoso conto escrito pelo italiano Carlo Collodi no século XIX, alçado a clássico mundial graças à Disney na década de 1940, a atual animação recorre a um jogo-duplo ao resgatar a saga do boneco de madeira que sonha com a transformação em menino, e salpica elementos na trama tanto para o público adulto quanto para o infantil. Logo, há inúmeras camadas possíveis de leitura sobre um mesmo aspecto. Gepeto, o marceneiro que cria Pinóquio, resolve fazê-lo após perder o filho em um acidente dramático durante a Primeira Guerra Mundial, quando a sua cidadezinha é bombardeada ao léu…

Com golpes enervados, retalha um pedaço de pinho: o resultado é uma criação disforme, incompleta e grotesca. No ato, Gepeto está alcoolizado, já que se entregou à bebida após a perda irreparável, como forma de suspender e superar a realidade. A bebida serve de escudo para que Gepeto não precise encarar o martírio de dias que se acumulam em um cenário embolorado, tomado pela falta de seu filho amado. O álcool permite ao homem uma maneira de alucinação que não tem a ver, necessariamente, com visões físicas da realidade, mas com uma visão subjetiva dessa mesma realidade, que deprime o cérebro e leva o corpo a um estado de relaxamento exagerado. É uma fuga…

Quando perdeu o filho que o inspirou a criar Pinóquio, o velho Gepeto terminava de esculpir em madeira um Cristo em tamanho real para a igreja de sua cidade. Ao se deparar com a imagem incompleta, inacabada, Pinóquio pergunta ao “pai” porque aquele pedaço de madeira é adorado enquanto ele, feito do mesmo material, é rejeitado pelas mesmas pessoas. Nessa cena, plena de uma religiosidade indisfarçável, Gepeto assume a figura de um “pai” que pode ser comparada à relação estabelecida pela Humanidade com a ideia de Deus. Pinóquio, frágil, pequeno, falho, busca as respostas diante desse pai.

A religião não deixa de ser também essa alucinação da realidade. Ela nada tem a ver com o plano terreno, concreto, palpável. Não chega a ser coincidência o fato de que muitas pessoas, após uma suposta conversão, troquem o uso de drogas pela religião. É a substituição de uma alucinação pela outra. É uma forma que parece menos autodestrutiva de escapar à dureza inescapável da realidade. Deus paira acima e detém todas as respostas que não se encontram no cotidiano, diante de perdas e fatos insuportáveis, como a morte de um filho. Ao ultrapassar a realidade, a religião oferece um espaço de conforto e cuidado.

Diante da morte, poucas soluções são tão eficazes quanto aquelas oferecidas pela religião. O mundo prático não encontra respostas suficientes para o desespero da dor de ficar sem um ser querido. A transcendência do mundo em que este fato terrível aconteceu surge, claramente, como uma solução mágica, eficiente, agradável. Estamos aqui de passagem, e colocar o pensamento em um lugar diverso deste “vale de lágrimas” é, psicologicamente, um alívio. No “Pinóquio” de Guillermo del Toro, a morte é representada através de figuras míticas, aladas, com a metáfora da ampulheta como o tempo que nos escorre…

Os argumentos concernentes à religião são distintos da razão, esta própria da realidade. A arte também professa uma fé, mas diletante. Oferece mais perguntas do que respostas, realça as dúvidas, concede nuance às imagens. “Pinóquio” é, sobretudo, uma obra de arte, que ultrapassou séculos, gerações e, com diferentes leituras, comoveu pessoas ao redor de todo o mundo por tocar em questões que afligem a vida humana desde seu nascedouro até a morte. O principal mérito da releitura de Guillermo del Toro é dar complexidade e tessitura ao mistério da existência a partir de uma fábula feita para crianças…

A arte, ao ultrapassar a realidade e alucina-la, não nos aliena da nossa fatal circunstância, mas nos põe em contato com sua mais profunda essência, como se ela colocasse outro plano, com outros matizes e novas camadas, sobre nossa rotina fática, compreendendo que o ser humano não se satisfaz apenas em sua condição biológica, e necessita da subjetividade para suportar dias que, alheios ao espanto da estética, tendem a se acumular inutilmente em direção à cova, desfeitos de sentido e das sensações propiciadas pela arte. Ao fim, apenas uma constatação: precisamos ultrapassar a insuportável realidade, porque ela é insuficiente e limitada. E a realidade é muito mais do que os fatos.

Ilustração oficial de Pinóquio feita por Enrico Mazzanti em 1883.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]