*por Raphael Vidigal
“Quando entramos numa família, pelo ato de nascermos, entramos realmente num mundo que é incalculável, num mundo que tem suas próprias e estranhas leis, num mundo que poderia passar sem nós, num mundo que não criamos. Em outras palavras, quando entramos numa família, entramos num conto de fadas.” G. K. Chesterton
A árvore genealógica da música popular brasileira é tão profícua quanto diversa. A imigração italiana dá o tom da divertida e cômica cançoneta interpretada pelo inveterado Ivon Curi, com todos os seus dotes de intérprete. O samba marca presença e pede passagem com a dupla baiana Tom e Dito, que abre alas para a exaltação atípica de Tim Maia e sua família televisiva. O rock dos Titãs não poderia faltar, assim como a composição singela de Edu Lobo e a prece em forma de canção do Padre Zezinho. Carlinhos Brown chega com um pop envolvente, na linha do choro do grupo Cria. Essa família vai da balada ao funk.
“Tutti Buona Gente” (foxtrote, 1957) – Bruno Marnet
A imigração italiana é responsável por várias influências na cultura brasileira e a música não poderia ficar de fora. Os gestos típicos e demasiados dos italianos, principalmente com as mãos, e a forma acalorada de falar, aparecem em filmes de cineastas clássicos como Fellini, Ettore Scola e Dino Risi, entre outros. “Tutti Buona Gente”, foxtrote bilíngue lançado em 1957 pelo polivalente Ivon Curi é uma sátira à “moral e os bons costumes” de uma família italiana, composta por Bruno Marnet. Ivon lança mão de todos os seus recursos dramáticos para tornar essa peça cômica numa deliciosa canção sobre os relacionamentos familiares.
“A Grande Família” (samba, 1972) – Tom e Dito
Surgida em 1972, a primeira versão do seriado “A Grande Família” tinha no elenco Jorge Dória, Eloísa Mafalda, Brandão Filho, Osmar Prado, Paulo Araújo, Luiz Armando Queiroz e Djenane Machado. Para essa estreia, a dupla baiana formada por Tom e Dito foi requisitada para compor a trilha sonora de abertura, e se saiu com uma canção homônima ao seriado que faria enorme sucesso. Tanto que, em 2001, quando a segunda versão estreou, voltou a ser utilizada, desta vez com a interpretação do sambista Dudu Nobre. Os versos captam bem a natureza desse relacionamento familiar no lar da “A Grande Família” brasileira.
“A Grande Família Brasileira da Comunicação” (soul, 1985) – Tim Maia
Tim Maia compôs uma música sobre família bem ao seu estilo. E, como é sabido, tudo que vinha do rei do soul brasileiro ultrapassava os paradigmas e parâmetros utilizados. Caretice não era com o Síndico. Em “A Grande Família Brasileira da Comunicação”, lançada em 1985, Tim exalta nomes que fizeram história na televisão brasileira e que, de uma maneira ou de outra, o ajudaram a alcançar o estrelato. Assim, percebe-se outra característica desse compositor polêmico e controverso, que fugia do bom-mocismo como o diabo da cruz: a gratidão. Chacrinha, Faustão, Raul Gil e Ari Camargo são alguns dos exaltados na música.
“Família” (rock, 1986) – Arnaldo Antunes e Tony Bellotto
Talvez essa seja uma das músicas sobre família mais identificadas com o público brasileiro. Ironicamente, a canção aparece num dos discos mais pesados do grupo Titãs, o emblemático “Cabeça Dinossauro”, de 1986. O lançamento foi precedido pela prisão de Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, compositores de “Família”, por porte de heroína. Cercado por polêmicas, o álbum alcançou sucesso de público e de crítica. “Família” capta momentos do ambiente familiar, sem a natural condescendência, o que deve ter contribuído para seu sucesso, e conta com um refrão marcante. Foi regravada por Nando Reis e pelo grupo Molejo.
“A Família” (MPB, 1990) – Abel Silva e Edu Lobo
Com Marcelo Tas e Carlos Moreno, famoso garoto-propaganda da Bombril, no elenco, o programa infantil “Rá-Tim-Bum”, estreou na TV Cultura em 1990. Para compor a trilha sonora, foi escalado Edu Lobo, que contou com o letrista Abel Silva como seu parceiro. É da dupla a música “A Família”, integrante do seriado. Interpretada por Zé Renato, ela aborda as características peculiares de cada membro de uma família. “O jeito engraçado ou implicante do irmão/ A mãe que ensina o sim e o não/ O pai quer ser cabeça, mas é mesmo coração”, diz a letra. A melodia inspirada de Edu Lobo cresce com o arranjo do pianista Cristóvão Bastos. Essa música especial está entre as mais sensíveis sobre familiaridades.
“Oração pela Família” (religiosa, 1990) – Padre Zezinho
Muito antes de Padre Marcelo Rossi e Padre Fábio de Melo, a “família de padres da música brasileira”, por assim dizer, conheceu com enorme sucesso o Padre Zezinho, mineiro da pequena cidade de Machado, no interior do Estado. Entre os hits musicais do líder religioso estão “Te Amarei, Senhor”, “A Ti Meu Deus”, “A Barca (Pescador de Homens)”, “Cantar a Beleza da Vida” e “Amar Como Jesus Amou”, regravada por Fernanda Takai em 2014. O rol também compreende “Oração pela Família”, lançada em 1990. Nela, Padre Zezinho realiza uma prece em forma de canção em prol de todas as famílias do mundo.
“Te Amo, Família” (pop, 2007) – Carlinhos Brown e Michael Sullivan
Carlinhos Brown foi casado com Helena Buarque, filha de Chico Buarque e Marieta Severo, e teve, com ela, quatro filhos, incluindo Francisco e Clara, que participaram do último disco do avô famoso, “Caravanas”, de 2017. Como se vê, a árvore genealógica de Carlinhos Brown é poderosa. Logo, não espanta que, em 2007, ele tenha lançado “Te Amo, Família”, um pop cheio de ambientações, em parceria com o hitmaker Michael Sullivan. Na letra da canção, o mais paternal dos jurados do programa The Voice Brasil homenageia a memória de sua família: “Eu me lembro, tia Nazaré/ Eu me lembro, tia Salomé/ Não esqueço, tio João…”.
“A Família” (choro, 2013) – Vinicius Castro
O Grupo Cria surgiu com a disposição de fazer “música pra toda família, pra bagunçar”, como afirmam seus integrantes. Com direção de Vinicius Castro, responsável pelas composições, a trupe é formada por Maíra Martins (voz), Gustavo Pereira (voz e violão), Mateus Xavier (percussões), Ayran Nicodemo (violino), Frederico Cavaliere (clarinete e clarone) e Christian Bizzotto (teclados e sanfona). Esse espírito de comunhão passa para a faixa “A Família”, que surge como uma marchinha, envereda pela marcha-rancho e o frevo, com passagens pelo choro e jazz. Ou seja: uma peça diversa e rítmica, como, aliás, toda família.
“Família” (pop, 2015) – Fábio Jr.
Casado sete vezes e pai de cinco filhos, Fábio Jr. envolveu-se com personalidades como Glória Pires, Guilhermina Guinle, Patrícia de Sabrit e Maria Alexandre. Do clã de rebentos, fazem parte os não menos famosos Fiuk, Cleo e Tainá, que enveredaram pela carreira artística como músicos e atores, a exemplo do pai. Desta forma, era natural que Fábio Jr. desse o seu depoimento, em forma de música, sobre essa constituição social tão tradicional e diversa: a família. Após dez anos sem um disco de inéditas, ele voltou a apresentar novidades em 2015, dentre elas, “Família”, que define como “coisa mais maluca”.
“Eu” (infantil, 2016) – Paulo Tatit
Formado em 1994 por Sandra Peres e Paulo Tatit, o duo Palavra Cantada é hábil em oferecer visões de mundo interessantes a partir do universo infantil, isto é, sem subestimar a capacidade reflexiva das crianças. É o que acontece, por exemplo, em “Eu”, uma divertida canção infantil que aproveita o relacionamento entre uma mãe sulina e um pai nordestino para propor reflexões sobre a família, o encontro com o diferente, a compreensão e a tolerância. Enfim, estes valores que andam em falta nos dias de hoje. A canção ganhou um clipe que mantém o caráter lúdico da empreitada, sem abrir mão do conteúdo que se pretende transmitir para crianças de todas as idades, e que nunca perde a sua atualidade.
“Trem-Bala” (balada, 2016) – Ana Vilela
Ana Vilela estourou na internet com um vídeo caseiro compartilhado no YouTube em que, munida apenas de seu violão, ela dava voz a “Trem-Bala”, composição autoral. O que dava força à canção era a sinceridade transmitida pelos versos da artista, com uma dose de mensagens edificantes de autoajuda. O sucesso trouxe consequências para a londrinense que surgiu para os holofotes com apenas 18 anos. Luan Santana logo pegou carona e participou de uma segunda versão do hit. A exposição também rendeu a gravação de um disco, que não repetiu o êxito do aparecimento meteórico. Ana ensina a sorrir, abraçar a família.
“Família” (funk, 2018) – MC Tikão
Esta, talvez, seja a mais inusitada canção já criada sob o título de “Família”. Justamente porque o autor, MC Tikão, contradiz o status quo e, de maneira subversiva e transgressora, fala sobre a relação familiar que ele construiu com os outros detentos no período em que esteve preso. Uma temática com tal ousadia só poderia vir do funk, gênero marginalizado e perseguido pelo reacionarismo nacional, que aborda sem meias palavras temas que, historicamente, foram alvos de uma conduta moralista e hipócrita, como o sexo e a violência. O videoclipe da canção destaca os familiares do compositor Tikão.
Foto: Rede Globo/Divulgação.