“E nada como um tempo após um contratempo (…)
E como já dizia Jorge Maravilha prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão, do que dois pais voando
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta” Chico Buarque
Representante da Era de Ouro do rádio, que consagrou os cantores de “dó de peito”, aqueles que cantavam até sem microfone, Nelson Gonçalves lançou, em 1962, “Seresta Moderna”, música de Adelino Moreira que dava um recado direto para João Gilberto, papa da bossa nova: “Um gaiato cantando sem voz/ Um samba sem graça/ Desafinado que só vendo”. Em 1966, foi a vez de Adoniran Barbosa se lamentar diante do sucesso da jovem guarda, com “Já Fui uma Brasa”: “Mas lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro/ Tocava ‘Saudosa Maloca’”, cantava o autor da clássica “Trem das Onze”.
Um ano depois, em 1967, a Passeata contra a Guitarra Elétrica precedeu o álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”, que concretizava musicalmente as bases do movimento capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. E, quando a Blitz invadiu as paradas de sucesso no ano de 1982, o discurso combativo e politizado da MPB começou a ser substituído por histórias cotidianas, de amores e dores, que se voltavam para os próprios umbigos daquela juventude imersa nos acordes do rock.
Todas essas espécies de rupturas entre gerações que marcaram a canção popular brasileira ou, nas palavras de Caetano, sua “linha evolutiva” parecem ter cedido espaço, nos últimos anos, para uma relação diferente, que se assenta mais na reverência do que na contestação. Além de não haver uma quebra clara, até pela ausência de um gênero ou segmento dominante, com a dispersão própria de tempos cada vez mais velozes, descartáveis e globalizados, não são raros os jovens que homenageiam seus ídolos.
Em 2015, o cantor Silva iniciou bem-sucedida turnê com o repertório de Marisa Monte. O carioca Qinho fez a mesma aposta com “Fullgás” (2018), calcado na obra de Marina Lima. No disco de estreia, “Galanga Livre” (2017), o rapper Rincon Sapiência convidou o veterano Sidney Magal. E mesmo aqueles com mais chão percorrido têm adotado a prática. Para 2019, Nando Reis prometeu um disco só com músicas de Roberto Carlos.
“As relações entre gerações são tortuosas, misturam rebeldia e reverência, não são muito lineares. Havia uma contestação da bossa nova por parte da tropicália, mas com o tempo isso se transformou e os artistas tropicalistas passaram a cultuar João Gilberto e Tom Jobim, às vezes até tentando apagar das próprias biografias os traços mais rebeldes da juventude”, aponta o jornalista e crítico musical Pedro Alexandre Sanches, que nos ajuda a tentar desvendar esse enigma na entrevista abaixo.
1 – Atualmente parece haver uma mudança na relação entre gerações dentro da música brasileira. Em determinados períodos ela foi de rompimento: bossa nova com samba-canção; Tropicália com Bossa Nova; rock com MPB. Essa relação de reverência atual que parece dominar a música brasileira é uma novidade? Está restrita ou se verifica mais em alguns segmentos?
Então, eu nunca pensei concretamente sobre isso, nem tenho certeza de que concorde 100% com você. Como a gente sabe de dentro de casa mesmo, as relações entre gerações são tortuosas, misturam rebeldia e reverência, não são muito lineares. Por exemplo, havia uma nítida contestação da bossa nova por parte da Tropicália, mas com o tempo isso se transformou, os artistas tropicalistas, assim como todos os outros da mesma geração, passaram a cultuar sem restrições gente como João Gilberto e Tom Jobim, às vezes até tentando apagar das própria biografias os traços mais rebeldes da juventude. Outra questão é a relação, digamos, entre netos e avós, assim como na vida alguns filhos rebeldes que encontram refúgio na geração dos avós, acredito que na arte e na música esse fenômeno também possa se expressar, de um modo até obscuro, por exemplo, a música trans de atualmente é filha ou neta do Mangue Beat? O funk carioca é filho, neto ou bisneto do samba de raiz? Em outras palavras, se você disser que a geração atual é 100% reverente aos chicos e caetanos eu posso até concordar, mas… Chico e Caetano são avós, bisavós ou tataravós deles? Esta resposta tá parecendo a letra de “Babá Alapalá”, do Gil, e acho que não é por acaso, hahahaha…
2 – Na sua opinião, a que se deve essa atual relação de reverência entre gerações na música brasileira, com vários artistas jovens gravando discos em homenagem ou com músicas de cantores mais antigos e até dividindo o palco em shows?
Então, acredito que, não só hoje, esses movimentos de sístole e diástole convivem. Por um lado, Johnny Hooker se estranha com Ney Matogrosso, acho que mais pelas semelhanças entre eles que pelas diferenças, mas por outro ele grava “Caetano Veloso” bajulando o dito cujo, enquanto a Anitta fica contrariada com provocação de Daniela Mercury e faz dueto com Gil e Caetano, e assim por diante. A MPB dos anos 1960 é de pura conflagração, mas acho que essas pulsações aconteciam da mesma maneira, Elis Regina e Elizeth Cardoso entre tapas e beijos, Ataulfo Alves patrocinando Clara Nunes e sendo ultrapassado por ela…
3 – O rompimento com gerações anteriores nunca foi exclusividade da música brasileira. Qual a importância desse tipo de movimento dentro de um território de reflexão como são as artes? E, na via contrária, o que a relação de reverência traz de positivo, quais são as principais contribuições que ela agrega?
No fundo todo mundo está sempre dividido entre compartilhar um lugar ao sol com os outros e roubar só pra si a fresta de sol que está saindo por tal janela. Além da dinâmica das gerações, tem também a dinâmica das turmas, das patotas, às vezes dos lobbies… Como já citei, Johnny Hooker, no momento daquele conflito com Ney Matogrosso, pareceu pertencer mais à patota do Caetano que à do Ney, mas o que garante para nós, meros espectadores, que de lá para cá quem era amigo não brigou e vice-versa? Lembro da Rita Lee brigando com Chitãozinho & Xororó, se não estou confundindo a dupla, porque eles defendiam os rodeios. O motivo público eram os maus tratos com os animais, mas como saber se não era um confronto de gerações, ou um duelo entre rock tropicalista e country rock?
4 – Quais são os encontros entre gerações que você considera mais bem sucedidos e quais não lograram o sucesso esperado? A que se deveram, nesses casos, o sucesso e o fracasso?
Rapaz, você sempre com perguntas difíceis! Todo encontro tem seus desencontros, né? São muito celebrados as parcerias inter-geracionais recentes entre Caetano e músicos cariocas jovens, entre Gal Costa e Pupillo do Mangue Beat, entre Elza Soares e o pessoal underground paulista. Eu não sou tão fã assim, acho que em meio a acertos há trombadas meio desastrosas. Mas as trombadas não invalidam o lado bacana dos encontros, até pelo atrito que geram, e nesse caso me irritam mais os jornalistas e fãs que reverenciam cegamente e acriticamente qualquer coisa que o vovô ou a vovó faça. Dá um pouco de saudade dos tempos em que os fãs do Pink Floyd vaiavam os próprios ídolos em plena arena do rock, hahahahahahah… Contém ironia, talvez não muito feliz…
5 – Qual a maior qualidade e o grande defeito da nossa geração atual de músicos, intérpretes e compositores?
Qualquer geração é heterogênea demais para que a gente possa unificar qualquer resposta a respeito. Numa mesma faixa etária cabe gente como Linn da Quebrada, abertamente antifascista, e, sei lá, a tia Sandy, que não se consegue decifrar nem pelas letras das músicas, nem pelas declarações, nem pelos silêncios. E Anitta e Nego do Borel, são defensores da periferia ou reaças ou isentões preocupados em agradar todo mundo o tempo inteiro? Será que, por baixo dos panos, os confrontos geracionais são também políticos e ideológicos?
Raphael Vidigal
Fotos: Divulgação.