*por Raphael Vidigal
“Quem está contra, ensina a máquina, é inimigo do país. Quem denuncia a injustiça comete delito de lesa-pátria. Eu sou o país, diz a máquina. Este campo de concentração é o país: esta podridão, este imenso baldio vazio de homens. Quem crê que a pátria é uma casa de todos será filho de ninguém.” Eduardo Galeano
Os porões da ditadura militar brasileira estavam infestados de torturas sinistras enquanto, em 1978, o grupo gaúcho Almôndegas lançava “Androginismo”, música de Kledir Ramil. Em dezembro daquele ano, o Ato Institucional N º5, que, dentre outras medidas, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, finalmente caiu, após uma década. Passados 40 anos, o país elegeu um presidente que defendia a tortura e apoiava manifestações em favor da volta do AI-5, e Almério tornou a cantar os versos de Ramil: “Quem é esse rapaz que tanto androginiza/ Que tanto me convida pra carnavalizar?/ Que tanto se requebra no céu de um salto alto/ Que usa anéis e plumas a lantejoulizar?”.
A faixa integra “Desempena Vivo”, registro do álbum de estúdio gravado em 2017, o segundo da carreira solo de Almério – que valeu a ele o Prêmio da Música Brasileira na categoria cantor revelação –, e apresenta, ao todo, 19 canções que foram interpretadas no Teatro Santa Isabel, no Recife. “Eu quero desativar a bomba relógio que mora dentro da gente, quero desativar injustiças, preconceitos, desigualdades e desumanidades com minha poesia, meu canto. Se alguém parar para refletir sobre, ‘Desempena’ já cumpriu a sua função de transformação”, diz ele. Em “Androginismo”, Almério alia a irreverente mensagem musical a um discurso politizado em defesa da liberdade sexual.
Bandeiras. “Nossa sociedade é um jardim policromático, sempre foi, o diverso é lindo e importante, as questões de sexualidade e gênero têm que ser levadas às escolas, é preciso reforçar cada vez mais o respeito e interferir nessa violência contra os corpos LGBTQIA+, levar essas discussões para dentro de casa. A gente atravessa um mar de confusões psicológicas e, quando chegamos à margem, temos que enfrentar uma sociedade que nos expurga, fere e mata. Como assim? É muito desumano! No que minha sexualidade vai afetar negativamente a vida da outra pessoa?”, questiona.
Sem se fazer de rogado, Almério presta reverência às “cantoras sapatônicas atômicas Cássia Eller, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto, Ana Carolina”, que, em sua vida, foram mais decisivas na hora de empunhar bandeiras do que Ney Matogrosso e o grupo performativo Dzi Croquettes, capitaneado pelo coreógrafo e dançarino Lennie Dale na década de 1970. “Eu adolescente ouvindo ‘os imorais falam de nós, do nosso gosto, nosso encontro, da nossa voz’ (de Zélia Duncan) era um abrigo pra mim. Cazuza era um abrigo pra mim. E a maior intérprete do mundo Maria Bethânia me fazia voar! Essa era a minha revolução. Ney é um planeta tão vasto, complexo e importante que eu só fui me debruçar já adulto. Ainda estudo Ney, e é sempre impactante. Minha voz é minha bandeira!”.
Origem. Pernambucano de Altinho, Almério se mudou aos 20 anos para Caruaru. A influência da cidade pode ser sentida no arranjo para “Androginismo”, com instrumentos de sopro que remetem às tradicionais bandas de pífanos de Caruaru. Com boa parte do repertório autoral, ao todo oito canções, o artista conta que, quando pedala, costuma ser “visitado por muitas melodias”. “Meu processo de criação é natural, eu permito chegar, essa permissão é um portal que se abre, destampando a inspiração retida de alguns tempos. A maioria das vezes vem melodia e letra juntas. É bem raro, mas tem vez que vem no violão”, diz. Em “Tatoo de Melancia”, Almério fala sobre Deus, cocaína e dor de cotovelo.
“Arte é sopro de transformação, do entretenimento ao experimental, da música romântica à erudita. Eu gosto de tocar nas dores e sabores da minha geração, a dor da outra pessoa é minha dor. Assim como posso beijar o amor quando fecho os olhos, a atemporalidade das palavras é ferramenta de chacoalhar a vida a todo momento. Eu tiro proveito delas para fortalecer minhas lutas”, reflete. As demais músicas contemplam, em sua maioria, artistas contemporâneos, como a conterrânea Isabela Moraes, de quem dá voz a “Lá Vem Ele” (parceria com Pablo Patriota) e “Segredo”, e Juliano Holanda, outro pernambucano arretado, diretor musical da empreitada, que comparece com “Trêmula Carne”, “Avesso” e mais.
“Minha base sonora é MPB e quase tudo que essa sigla abraça. As compositoras e compositores que dialogam mais próximas a mim estão muito presentes no meu trabalho, como Juliano Holanda, Isabela Moraes, Joana Terra, Ceumar, Zélia Duncan”, enumera. No papel de intérprete, Almério garante precisar “sentir verdade em tudo que me rodeia”. “Quando a música vem dessa fonte belíssima e natural, me arrebata! Amo a simplicidade da poética mais direta, como também gosto de vociferar a música mais engajada. Amo o existencial. Ser essa voz que canta os versos dessa maré de poesia é fascinante para mim”, declara.
Palco. Com larga experiência dramatúrgica, Almério não deixa de ser um ator no palco. As muitas penas do visual exuberante, o peito aberto, a calça de couro apertada, a maquiagem preta em torno dos olhos e os amuletos que carrega no punho não são casuais. O artista tem consciência da força de sua imagem. Mas aposta ainda mais no voo lânguido de seu canto. “Fui fazer teatro por respeito ao meu ofício, e tenho de volta esse respeito através do meu público, me busco e melhoro para meu público”, diz. A dedicação deu frutos. Almério cantou em seu disco com Elba Ramalho, abriu show da turnê comemorativa de 20 anos de “O Grande Encontro” e foi atração do Rock in Rio com Liniker e Johnny Hooker.
“O palco, hoje, é o lugar onde me sinto mais seguro, inteiro, feliz. Seja numa live, em um lugar improvisado ou num teatro lotado. A música é uma deusa que beija a minha existência”, filosofa. Em tempos de pandemia, ele afirma que tem “se visitado, o olhar pra dentro, e enlouquecido também”. “Tudo me inspira a compor, criar, cantar. As parcerias musicais são um ‘choque entre o azul’ e me despertam para um amor revolucionário”, salienta, evocando o verso de “Você É Linda”, de Caetano Veloso, prestigiado em “Desempena Vivo” com “Divino Maravilhoso”, feita com Gilberto Gil em 1968 e lançada por Gal Costa, com seu grito de torpor e esperança cada vez mais atual: “Tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso…”.
“Mas tenho chorado, e me entristece ver nosso Brasil à deriva, num mar de horror. Esse desgoverno é o maior equívoco da história!”, dispara, no momento em que o Brasil registra 130 mil mortes pelo novo coronavírus, que o presidente, em pronunciamento oficial à nação, chamou de “gripezinha”. “Resisto cantando, cantando e cantando: Desempena, Desempena, Desempena, Desempena, Desempena, Desempena, Desempena!”.
Fotos: Juarez Ventura/Divulgação.