Documentário sobre prisão de Caetano pela ditadura reflete Brasil de 2018

*por Raphael Vidigal

“Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.” Albert Camus

Enquanto Caetano Veloso dava um longo depoimento sobre a sua prisão pelo regime militar, o Brasil caminhava para eleger a presidente uma figura não apenas identificada, como exaltadora da ditadura, e que, no impeachment de Dilma Rousseff, dedicou o voto favorável à cassação da ex-presidente a Alberto Ustra, único militar condenado por tortura nos anos de chumbo. Nada de se espantar, já que o Brasil, com um papel importante da grande mídia, se habituou a naturalizar e banalizar tais barbaridades, que se transformaram em objeto de rentáveis espetáculos de demagogia, tanto em templos religiosos quanto na TV.

Se tivesse conservado a capacidade de considerar abjeta a mais covarde e sádica forma de infligir dor a alguém, o país jamais teria dado a Jair Bolsonaro um posto tão importante e simbólico, pelo qual passaram Juscelino Kubistchek, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Lula. O depoimento de Caetano para o documentário “Narciso em Férias”, disponível para assinantes da GloboPlay, remonta a 1968, o período mais violento da ditatura brasileira, quando se instituiu o AI-5, mas foi dado em 2018, não por acaso.

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Prisão, assassinato, eleição. Como disseca e detalha o biógrafo Mário Magalhães no fundamental livro “Sobre Lutas e Lágrimas: uma Biografia de 2018, o Ano que Flertou com o Apocalipse”, aquele ano ficou marcado por três acontecimentos históricos: a prisão de Lula, o assassinato de Marielle Franco e a eleição de Bolsonaro. Para além das ligações diretas entre um fato e outro, há as implicações estruturais, que aproximam a narração sessentista de Caetano ao Brasil do novo milênio, em plena corrosão de sua jovem, bamba e troncha democracia, vulnerável às vicissitudes de uma classe política e econômica que nunca abandonou o poder e aprimorou os mecanismos para tornar a brutalidade das relações esgarçadas de classe em um programa de Estado.

A opção do filme dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, com base em documentos encontrados após 50 anos, é pelo óbvio: Caetano diante da câmera contando o que tem de memória. Uma ou outra intervenção acontece de maneira pontual, como a entrega da revista que Dedé Gadelha, ex-esposa do cantor, levou para ele no cárcere e, bem mais tarde, inspirou a linda canção “Terra”. A prisão arbitrária de Caetano, uma personalidade conhecida, lembra a do ex-presidente Lula. O músico passou dois meses em cana, inicialmente em uma solitária, antes de ser mandado para o exílio em Londres, onde ficou mais dois anos, e custou a ser informado pelas autoridades do motivo de sua detenção.

Reacionarismo. Em tese, era acusado de ter cantado o Hino Nacional em ritmo de Tropicália, o que seria um deboche. Porém, como o próprio declara no longa, sabe-se que a acusação formal é apenas um artifício para alcançar o objetivo final: obstruir e reprimir as manifestações culturais de liberdade; ou, no caso de Lula, impedir a volta do PT ao poder na sequência da derrubada de Dilma. Como no caso de Caetano, hoje está claro que Lula não foi preso por ter se corrompido, mas, sim, por ter votos. Em suas lembranças de cadeia, Caetano faz observações sobre o cenário sócio-político do Brasil, denuncia a permanência da escravidão e pede uma nova abolição.

A percepção dessas repetidas opressões de classe devolve à tona a história de Marielle, vereadora carioca, negra, favelada, bissexual, filiada ao PSOL, assassinada a tiros em crime jamais solucionado. Esse mosaico de um país que anda a galope para trás, orgulhoso da própria ignorância e renegando o conhecimento a todo instante, prenhe de um reacionarismo bronco, une pontas aparentemente equidistantes, mas que se encontram em um espaço muito mais do que paralelo: ele contém a dureza da realidade.

2020. Dois anos depois, parece que só Caetano mudou, como bem avisou na entrevista a Pedro Bial, com direito a uma cutucada direta no apresentador: não é mais ‘tão liberalóide’, como ele mesmo disse, e reviu sua crítica histórica às experiências socialistas pelo mundo, graças ao encontro que teve com o youtuber Jones Manoel, “pernambucano, preto, jovem, muito inteligente”, nas palavras de Caetano, que o apresentou ao filósofo italiano Domenico Losurdo.

No mais, os mandantes do assassinato de Marielle continuam incógnitos, Lula segue impedido de candidatar-se e Bolsonaro permanece presidente. Uma saída tangente – pelas frestas do sistema, talvez seja evocar a ótima música homônima do também jovem pernambucano Johnny Hooker, cujo refrão detém-se nessas duas palavras: “Caetano Veloso!”. E enfrentar o atraso com vigor e inteligência.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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