Álbum de estreia do D’Aguera é colcha de retalhos brasileiros

*por Ana Clara Fonseca (jornalista)

“poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.” Carlos Drummond de Andrade

É melhor puxar uma cadeira confortável, porque o álbum de estreia do D’Aguera é uma narrativa musical completa de vários brasis, que precisa ser apreciada. O duo, formado pelos cantores e compositores Beatriz Tomaz e Ricardo Radik, conseguiu unir em apenas oito faixas um repertório grandioso em harmonia, melodias e ritmos.

O álbum foi lançado pela Tratore em novembro de 2019. Com produção musical de André Hosoi, conta com a participação de grandes nomes da música, dentre eles Guinga, Dante Ozzetti e Benjamin Taubkin. A partir dessas presenças escolhidas com afinco a dupla trouxe em seu disco uma identidade própria e marcante.

No toque de união entre o samba, a MPB e o jazz brasileiro, a sequência musical faz protesto, alegra, narra, resiste e une. E se tem algo tão presente no povo brasileiro é essa sua diversidade atenuante.

D’Aguera frisa a importância de uma história bem contada, convidando esses mestres da música que tecem a história de um Brasil brasileiro. A composição de João Nogueira, “Esse meu Cantar”, parece ser escolhida como início do álbum para justamente apresentar o cantar de Beatriz Tomaz, interpretando o povo como um todo. Beatriz pretende falar por muitos, não só sobre as questões sociais, como também as transformações e manifestos da música brasileira. Em conjunto ao violão de Ricardo Radik, a canção é um mergulho único à narrativa brasileira, do samba à bossa nova.

D’Aguera também se preocupou em mostrar sua música como forma de protesto, sem deixar o momento atual passar despercebido, sabendo que vivemos tempos sombrios no governo brasileiro e que o Brasil é formado por desigualdades. “O Menino” é composição da dupla que aparece como aliada na linha de frente às oposições, preenchendo espaços vazios. Chega a doer forte no coração a maneira como Beatriz e Ricardo colocam a letra da canção contando a vida, morte e prisões da maioria da população brasileira: não negam e gritam sobre os meninos à margem de nossa sociedade.

Junto a esse contexto está “Eu Avisei” para alardear sobre os novos meios de informação duvidosos, e ressaltar essa nova sociedade que transparece no recente cenário brasileiro. Radik e Bia Tomaz destacam a esperança da mudança, argumentam sobre as possibilidades e a importância de resistir quando tudo parece dilacerar, lembrando que sempre renasceremos flor, “bem mais alto que toda dor”. Tornam evidentes essa simbologia aos últimos tempos no Brasil apenas pelo nome “Eu Avisei”, palavras que estão sendo entoadas até os dias atuais em referência às respostas do governo brasileiro ao seu eleitorado.

A obra completa traz um certo equilíbrio entre o peso da luta e a leveza do ser brasileiro. Enquanto uma música nos deixa angustiados e conscientes das realidades em nosso país, a próxima é para aquecer o coração e deixar também a esperança. “Achou!” é canção de Luiz Tatit e vem falar do então encontro do amor que sempre esteve aqui, em nós. Que mesmo diante da dor o amor nos salvará. A música já foi interpretada pela cantora Ceumar e agora D’Aguera nos oferece uma nova leitura em um arranjo musical simétrico e profundo no bandolim de André Hosoi e o violão de Dante Ozzetti. O duo nos faz reflexivos e emocionados sobre o amor e suas particularidades, ressignificando cada palavra em outros tons.

Ainda cumprindo com a promessa de mostrar a alegria do povo brasileiro, “Miolo do Caroço” é composição de D’Aguera, também no bandolim de André Hosoi e no baixo de Pedro Macedo, traz um samba contente exaltando as origens de nosso cantar e dançar. “Meu coração diz que o miolo do caroço deixou a sua raiz”. Ascendência de um povo sofredor e encharcado de boas energias da cabeça aos pés.

Por fim “Visão de Cego”, composição belíssima de Guinga e Aldir Blanc, pode ser a música que percorre todo o álbum D’Aguera, fazendo um passeio pela linha do tempo da cultura brasileira, andando junto ao Brasil dos dias atuais. A letra fala do país em seu espaço e tempo na visão de um cego sábio, lúcido e caminhante nas trilhas nacionais, sejam sonoras ou de concreto. A presença da música no álbum é escolha bem feita para trabalhar todo o contexto semiótico escolhido. Tecendo uma colcha brasileira aconchegante, D’Aguera nos faz “ver mil Brasis de uma só vez”.

O disco abre com “Desert Rapids” e se fecha com “Macumbaria”, ambas composições de Ricardo Radik e interpretadas pelo casal que, em um arranjo musical, trazem um jogo harmônio que se completam em força instrumental e melódica. Mais importante, cumprem seus papéis em uma narrativa, marcas de início e fim. “Desert Rapids” é como se um caminho em águas fluidas tivesse se abrindo e agora precisasse ser ouvido em união ao piano de Banjamin Taubkin, dando início ao álbum da dupla. Da mesma forma, “Macumbaria” surge para trazer a conclusão e finalização do disco, unindo várias participações especiais e fechando o repertório de um país que nasceu da música, da variedade, dos contrastes, e é, desde então, formado por vários e belos retalhos.

Foto: D’Aguera/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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