*por Raphael Vidigal
“A aranha traz uma bola de prata/ Nas mãos que não se vêem / E ao dançar, leve e sozinha,
Desata seu perolado novelo./ Com artes imateriais,/ De nada em nada vai tecendo;
Sua trama supera as nossas,/ Na metade do tempo./ Rapidamente levanta/ Territórios luzidios,
Pendentes depois de uma vassoura –/ Seus limites, esquecidos.” Emily Dickinson
O diagnóstico de câncer atemoriza a personagem principal. A espera pelo resultado do exame é o mote para o filme “Cléo das 5 às 7”, que catapultou o nome da diretora Agnès Varda (1928-2019) ao estrelato em 1962. Mas essa história de fundo nada teria de especial se a diretora belga não seguisse os princípios da Nouvelle Vague francesa, da qual muitos a acusam de ter sido a principal artífice. Fato é que a paternidade desse movimento revolucionário no cinema recaiu sobre os ombros de Jean-Luc Godard e François Truffaut (1932-1984), mais um indício do machismo vigente naqueles tempos idos que insiste em perdurar. Formada em fotografia, Varda era a única mulher da turma.
Além de brincar com o tempo da narrativa nesse longa-metragem protagonizado por uma hipnotizante Corinne Marchand, a também roteirista Varda literalmente inventa com as imagens e, com isto, consegue extrair planos e quadros fascinantes, onde o gestual mais simples dá conta de expressar toda uma angústia humana. Existencialista no sentido da relação com a passagem do tempo, tema, por si só, atemporal, não se pode deixar passar em branco outra característica menos apontada da produção: a trama gira em torno de uma mulher, a cantora que, para atenuar a fricção dessa agonia procura se distrair com as frivolidades do dia a dia numa cidade como Paris. Mas é ao se encontrar com o seu semelhante que ela experimenta breves momentos de alívio.
As condições do sexo feminino voltam a tomar a direção em “Uma Canta, a Outra Não”. Francamente feminista, o filme de 1977 retrata a trajetória de duas mulheres cujos caminhos se cruzam a partir de um aborto. Em ritmo e tom de jornada épica, a película se estende por vários anos e, afora chamar a atenção para a atualidade de reivindicações que têm ganhado vulto com uma onda cada vez mais encorpada e mobilizada do feminismo, o longa-metragem constrói personagens reais, capazes de criar uma identificação com o espectador tanto a partir de seus erros quanto das tentativas de acerto. Como em todos os filmes de Varda, o drama deixa escapar uma ponta de esperança. Mais uma vez, a relação com o outro é a porta de saída.
Para obter esses resultados, a cineasta não se absteve, ao longo da carreira, de buscar, ou “catar” – já que ela passou a se definir como uma “catadora de imagens” a partir de “Os Catadores e Eu” (2000) –, o sumo de sua filmografia no que se convencionou chamar de documentários assim como nas obras de ficção, por vezes borrando até o limite essas definições pré-estabelecidas por um cinema clássico que ela jamais praticou na essência. O derradeiro “Visages, Villages” (2018) traz a diretora no centro da trama, ao lado do fotógrafo JR. Com quase 90 anos de idade e meio século a mais de vida do que o companheiro de andanças, Varda demonstra sua vitalidade nesse roteiro autobiográfico em que ela descobre uma grandeza cinematográfica diante das coisas mais comezinhas. Esse olhar generoso é, também, solidário. E, para completar, vai à forra com o recluso Godard, amigo que ela não via há décadas.
Imagens: Daniel Dal Zennaro/Divulgação; e Corinne Marchand (à direita) e Agnès Varda no set de “Cléo das 5 às 7”, respectivamente.