*por Raphael Vidigal
“A Bíblia diz que não. Também doutores
Provam que não, que é tudo mentira.
O Santo Padre agarra, amarra, prende
e garante que de modo algum. Mas ela gira.” Brecht
Dilma não chora. A confirmação foi dada pela própria em entrevista a Mariana Godoy, cerca de um ano após o processo de impeachment que a afastou da Presidência da República, para a qual havia sido reeleita em 2014, em uma disputa acirrada com o então senador Aécio Neves, hoje deputado e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. A ex-presidente conta que aprendeu a controlar as lágrimas durante as torturas que sofria quando foi presa pelo nefasto regime militar brasileiro, que perdurou de 1964 a 1985.
Durante a votação do impeachment da petista, em 2016, o ora deputado Jair Bolsonaro saudou a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o homem que a torturou, e fez questão de tripudiar: “O pavor de Dilma Rousseff”, gargalhou. Na ocasião, deveria ter saído algemado do plenário por crime de incitação à tortura e à ditadura, previstos na Constituição, mas, ao invés disso, foi aplaudido por seus pares e turbinou a campanha que o elegeria presidente dali a dois anos. O único que teve a decência de cuspi-lo foi o deputado Jean Wyllys, do PSOL.
“O voto de Bolsonaro foi cruel com o Brasil. Nas entrevistas internacionais que concedi, as pessoas não entendiam como é possível alguém votar pela ditadura, pela tortura, e pelo que um torturador é capaz de produzir em alguém”, sintetizou Dilma, que há cinco anos era deposta num dos espetáculos mais grotescos da história recente do Brasil, com uma ovação medíocre a valores consagrados pelo reacionarismo hipócrita: a famigerada tríade “pátria, família e religião”. Como costuma afirmar o ator Alexandre Toledo, “os golpes no Brasil não são feitos para durarem pouco”.
No mesmo ano, Lula tornou-se réu na Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal mudou o entendimento sobre prisões em segunda instância, passando a permiti-las, e, dando a cereja ao bolo, o ex-presidente ainda foi alvo de uma espetaculosa operação coercitiva, conduzida por aquele que iria de bastião do justiçamento a ex-juiz comprometido com uma das partes: Sergio Moro, futuro Ministro da Segurança e Justiça de Jair Bolsonaro, hoje amargando um merecido ostracismo, desacreditado por todos e exibindo a sua conhecida mediocridade.
Na época da condução coercitiva, Lula vaticinou, em pronunciamento no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista: “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça. Ela está viva como sempre esteve”. O horizonte de 2018 estava claro: Lula liderava as pesquisas eleitorais e o PT caminhava para a quinta vitória consecutiva na aferição popular, com perspectiva de emendar nova reeleição. O arranjo cujas estranhas seriam reveladas após a ação de supostos hackers começou a entrar em jogo, num conluio entre mídia e poder judiciário – com a mediação dos agentes políticos: de novos empresários a velhos coronéis.
Lula acabou preso, passou 580 dias na cadeia, foi esculhambado e chamado de ladrão em veículos oficiais e oficiosos de mídia a torto e direito, com a morte política decretada por adversários que caíram babando em seu suposto cadáver. O judiciário lhe impôs a lei da mordaça para garantir que Bolsonaro chegasse ao poder em 2018, impedindo Lula de dar entrevistas durante o período eleitoral e, já com a eleição sacramentada, até de comparecer a velórios de seus parentes. A imagem de Lula era muito forte e temorosa. Quando obteve a permissão de se comunicar, ouviu mais de uma vez a mesma dúvida vinda de diferentes repórteres: “Se não tinha medo de nunca sair da cadeia”, e não esmoreceu. Com sorriso no rosto, cravava: “Vou sair e provar que o Moro é mentiroso”. Dito e feito.
Cinco anos após a deposição de Dilma, cumpriu-se a profecia da jararaca, viva como sempre esteve. Livre, Lula teve os processos pelos quais havia sido condenado anulados pelo plenário do STF, que determinou a incompetência de Sergio Moro. Antes, o mesmo STF decretou a parcialidade do agora ex-juiz, que agiu como um obstinado, e obediente, perseguidor a Lula. Com a condição de inocente, o petista retoma o favoritismo que sempre lhe pertenceu.
Logo, os fatos jurídicos do dia são: Lula inocente e livre para concorrer à Presidência da República. Sergio Moro, ex-juiz parcial e incompetente. Jair Bolsonaro, condenado em três instâncias por apoiar estupro, pela frase cretina dirigida à deputada Maria do Rosário: “Não te estupro porque você não merece”. Aos que consideram a frase inofensiva, façam um exercício de empatia: imaginem uma mulher pela qual vocês tenham estima sendo vítima da sentença.
Em 1966, o jornalista norte-americano Gay Talese produziu uma matéria histórica com Frank Sinatra sem conseguir ouvir o astro, valendo-se, justamente, desse desencontro. No filme “Alvorada”, de Anna Muylaert, que acaba de estrear no Festival “É Tudo Verdade” – com edição online em 2021 devido à pandemia – Dilma Rousseff recusa-se a ser tratada como personagem. Na negação, nos vazios e desencontros, no não-dito, está a verdade. Lula e Dilma são as personagens históricas de um momento único e podem, unindo-se as pontas, desmantelar esse período sórdido. Da deposição de Dilma à inocência de Lula: 50 anos em 5, como preconizou Juscelino Kubitschek. A História demanda estatura. Vendilhões e golpistas terão que se contentar com as migalhas cruas.
Foto: Gleisi Hoffmann, Lula e Dilma Rousseff em encontro do PT/Reprodução.