34 canções de vanguarda da música popular brasileira

*por Raphael Vidigal

“De que máscara/ se gaba sua lástima,
de que vaga/ se vangloria sua história,
saiba quem saiba./ A mim me basta
a sombra que se deixa,/ o corpo que se afasta.” Paulo Leminski

Inquietos, irreverentes, criativos, taxados pela indústria fonográfica de “malditos”, dada a incapacidade de contê-los ou etiquetá-los. A música brasileira é pródiga em artistas inventivos, guiados pela natureza contestadora, inconformada, dispostos a testar os limites consagrados e as fórmulas cristalizadas. Nenhum padrão produz o sumo da arte: para além da novidade, um olhar diferenciado. Perpassando várias décadas e estilos musicais, selecionamos canções que carregam o ímpeto da vanguarda e da experimentação, seja por seus autores ou pelas interpretações. Uma loucura tão metódica quanto inescapável ao sentido.

“Namorinho de Portão” (Tropicália, 1968) – Tom Zé
Lançada por Tom Zé em “Grande Liquidação”, primeiro álbum do autor, a composição se vale de uma abertura incidental da música de domínio público “Cai, cai, balão”, para, em seguida, incluir outros elementos caros à Tropicália, como a mistura sonora e a fluidez discursiva. “Namorinho de portão/biscoito, café/meu priminho, meu irmão/conheço essa onda/vou saltar da canoa”. A música foi regravada com grande sucesso por Gal Costa, no conceituado álbum que trazia, ainda, “Não Identificado” e “Baby”.

“Mamãe Coragem” (Tropicália, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome, no cinema por Glauber Rocha e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do cinema novo e do teatro oficina e de arena. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento por qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades no sul do país.

“Gotham City” (vanguarda, 1969) – Jards Macalé e Capinam
Apreciador de histórias em quadrinhos, o irrequieto Jards Macalé subiu ao palco com uma longa bata preta, enfeitada com um medalhão no peito, como se estivesse ali para anunciar o apocalipse, o que combinava com sua barba hippie. A reação do público do Festival Internacional da Canção de 1969 à estranheza proposital e provocativa de “Gotham City”, de Capinam e Macalé, foi “uma vaia consagradora”, nas palavras do músico. “Chegamos desconhecidos e, no dia seguinte, éramos famosos”, debochou. A faixa abordava os terrores da ditadura.

“Só Morto” (rock, 1970) – Jards Macalé e Duda Machado
Lançado em um compacto ao lado da faixa “Soluços”, o rock “Só Morto” precedeu o primeiro álbum de Jards Macalé, gravado com Lanny Gordin e Tutty Moreno em 1972. Parceria com Duda Machado, a música seria revista pelo cantor no disco “Jards”, de 2011. Com o estilo experimental de Macalé, dá o prenúncio da “morbeza romântica” que ele inauguraria com Wally Salomão nos anos 1970, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. Os versos condensados de “Só Morto” estilhaçam imagens como num intrincado jogo de palavras ao ouvinte.

“O Riso e a Faca” (Tropicália, 1970) – Tom Zé
Depois de estrear no mercado fonográfico com “Grande Liquidação”, que trazia a música “São, São Paulo”, vencedora do Festival da Record de 1968, Tom Zé colocou no mercado um segundo álbum, batizado apenas com seu nome na capa. Ele aproveitava a ocasião para reclamar, no encarte, da falta de pagamento pelo prêmio conquistado pela prefeitura de São Paulo. Sexta faixa do álbum, “O Riso e a Faca” seria regravada em “Todos os Olhos”, álbum da mais polêmica capa da discografia de Tom Zé. Investindo nos paroxismos tanto na letra quanto na estrutura, a canção une uma parte ácida a outra mais lírica, entendida como refrão. “Eu sou a raiva e a vacina”, definia ele numa das estrofes.

“Movimento dos Barcos” (canção, 1971) – Jards Macalé e Capinam
Jards Macalé sempre fez questão de dizer que nunca foi tropicalista, embora a mídia tenha insistido em um rompimento dele com o movimento na década de 1970. A verdade é que o artista manteve uma postura musical muito particular. Seja como for, em 1971, ele compôs com Capinam um de seus únicos sucessos populares, “Movimento dos Barcos”, uma canção ralentada, que versava sobre desilusões, em meio ao endurecimento da ditadura militar. A música foi lançada por Maria Bethânia, no espetáculo “Rosa dos Ventos”, e regravada por Macalé.

“Cabeça” (vanguarda, 1972) – Walter Franco
O júri formado por Nara Leão, Décio Pignatari, Júlio Medaglia, Roberto Freire e Rogério Duprat elegeu “Cabeça” como a vencedora do Festival Internacional da Canção de 1972, mas o compositor Walter Franco jamais recebeu o prêmio. No intervalo da apresentação, as vaias estrondosas da plateia e a presença de militares do regime ditatorial resultaram na remoção do júri, e o primeiro lugar acabou com “Fio Maravilha”, de Jorge Benjor, interpretada por Maria Alcina. O episódio é elucidativo do tipo de música que Walter Franco produziu. Assim como seus pares, notadamente Itamar Assumpção e Jards Macalé, ele renegou a vida inteira o rótulo de “maldito”, colado em artistas inconformados que encheram a música brasileira com trabalhos experimentais e de pura vanguarda.

“Vapor Barato” (canção, 1972) – Jards Macalé e Wally Salomão
Aquela geração ameaçada e violentada pela ditadura não se dobrou à tirania e truculência dos militares e encontrou, na experimentação de drogas proibidas e alucinógenas e na prática do sexo livre e desprovido do sentimento de posse, formas de resistir aos dramáticos tempos de chumbo. É dessa vivência que fala a música de Jards Macalé e Wally Salomão, dois dos artistas mais inventivos e originais do Brasil, em “Vapor barato”, cujo título é uma alusão à maconha. A desilusão com o momento também é refletida nos primeiros versos, com referência direta ao “casaco de general cheio de anéis”. Lançada no histórico show “FA-TAL – Gal a Todo Vapor”, em 1972, foi regravada pelo grupo O Rappa em ritmo de reggae.

“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com ritmo alegre e dolente a marcha-rancho “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972, carrega contrastes em todo andamento. Lançada pelo autor Sérgio Sampaio no VII Festival Internacional da Canção, e finalista do concurso, a música tornou-se emblemática não só pela letra ácida e contestadora, mas, talvez principalmente, em razão do desempenho de Sampaio no palco que, entre outras coisas, simulou um ato sexual com seu violão enquanto cantava: “Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer…”. Autobiográfica, balizada em versos imprecisos e debochados, a canção anuncia pontos importantes da liberdade sexual que aquela geração almejava. Regravada muitas vezes depois, sempre por nomes ligados à rebeldia e irreverência, como Maria Alcina, a canção nunca perdeu o sentido ou saiu de moda. Prova que o bloco de Sérgio Sampaio ia muito além da luta contra qualquer ditadura, era, sobretudo, um brado de libertação.

“Abundantemente Morte” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Wally Salomão compara a poesia de Luiz Melodia, com suas saídas inesperadas e soluções cheias de quebras e elipses, à própria geografia das favelas cariocas, onde o “Negro Gato” foi nascido e criado. “Abundantemente Morte”, lançada no álbum de estreia do compositor, certamente se integra a esse conceito. Já o título se vale de palavras aparentemente distantes, mas que se atraem feito ímã pela sonoridade. A morte, que seria a ausência de tudo, é posta lado a lado, ou frente a frente, com aquilo que ocupa tanto espaço a ponto de explodir, vazar, transcender. Por isso, ao final da faixa, Luiz Melodia decreta: “Ninguém morreu”.

“Me Deixe Mudo” (vanguarda, 1973) – Walter Franco
Walter Franco foi um dos compositores mais inventivos da música brasileira, difícil de ser etiquetado pelo mercado fonográfico, cabendo a ele, apenas, a alcunha de músico de vanguarda. Em 1972, no Festival Internacional da Canção, o júri formado por Nara Leão, Décio Pignatari, Júlio Medaglia, Roberto Freire e Rogério Duprat, elegeu “Cabeça”, de Franco, como a melhor canção, mas ele jamais recebeu o prêmio, porque as vaias da plateia e a presença dos militares da ditadura resultaram na troca de jurados. Em 1974, ao ter todas as suas músicas censuradas, Chico Buarque gravou “Me Deixe Mudo”, lançada com minimalismo por Franco em 1973, que ganhou a voz de Alice Caymmi em 2019.

“Bebê” (vanguarda, 1973) – Hermeto Pascoal
“Garoto, você está com muita liberdade comigo, não sabe que agora eu sou doutor?”. O irreverente Hermeto Pascoal, nascido no interior de Alagoas, não demora a descer a cortina de sua brincadeira durante a entrevista. Consagrado Doutor Honoris Causa pela New England Conservatory de Boston, nos Estados Unidos, o músico não esconde sua reticência quanto a esse tipo de título. “Foi uma festa, fiquei feliz pra danar. Fui lá e aceitei por um motivo: essa não é uma faculdade como a Berklee (também de Boston), com todo o respeito, ela está muito mais adiantada. É a maior dos Estados Unidos porque tem uma didática totalmente livre de composição. Como vou ensinar padrões de harmonia para as pessoas? Isso atrapalha a criatividade. Cada um tem o seu dom, não tem essa de dizer que um está certo e o outro errado”, destaca Hermeto, chamado de “bruxo” por Miles Davis e gênio por tantos outros. Em 1973, ele lançou “Bebê”, no álbum de título autoexplicativo “A Música Livre de Hermeto Pascoal”.

“Maracatu Atômico” (Tropicália, 1974) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
O movimento manguebeat deve muito a uma dupla nascida no seio do Tropicalismo. Na década de 70, Jorge Mautner e Nelson Jacobina compuseram juntos “Maracatu Atômico”, com imagens que angariavam para si uma liberdade completa e desbravadora em tempos de ditadura militar. A música foi lançada pelo próprio Mautner em 1974, e regravada por Gilberto Gil no mesmo ano. Mas foi a versão da Nação Zumbi, à época capitaneada por Chico Science, que a levou ao sucesso definitivo, quando, em 1996, ela reapareceu no álbum “Afrociberdelia”, que a apresentou a toda uma nova geração. Os versos poéticos de Mautner combinados à melodia de Jacobina e ao som da Nação foram vitais.

“Bem Entendido” (balada, 1974) – Renato Piau e Sérgio Natureza
Em 1974, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Galvão, Roberto e Erasmo Carlos e outros nomes do cenário nacional criaram canções especialmente para homenagear e serem interpretadas por Edy Star, baiano pioneiro em trazer as influências do rock cheio de purpurina para o Brasil, reconhecido no exterior como “glam”. Dentre esses nomes estavam Renato Piau e Sérgio Natureza, que criaram a balada “Bem entendido”, à época uma gíria para designar os homossexuais. A letra não poderia ser mais explícita e libertadora, com versos como “o amor só faz sentido todo, quando a gente gosta e sente um calafrio, um frio fino na espinha, e o coração cheio de sangue quente, bem quente”. Após esse primeiro disco, Edy não lançou mais nenhum, nem era preciso, sua performance fora suficiente para balançar as estruturas da caretice nacional.

“Tô” (samba, 1976) – Tom Zé e Elton Medeiros
Elton Medeiros (1930-2019) tinha fama de difícil, genioso. Suas melodias também não eram das mais fáceis. Inquieto, Elton foi além dos parceiros habituais. Já em 1976, topou o convite do tropicalista Tom Zé para participar do álbum “Estudando o Samba”. Elton não se fez de rogado e entrou na onda experimental do baiano, com quem deu luz a duas pérolas, a aguda “Mãe Solteira” e a provocativa “Tô”: “Eu tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”. Com outro espécime raro da MPB, o encontro se deu em 2011, quando Jards Macalé e Elton realizaram dueto em “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares.

“Berceuse dos Elefantes” (vanguarda, 1978) – Walter Franco
Minimalista, dono de um estilo único dentro da canção popular brasileira, influenciado pela cultura oriental e os haicais de origem japonesa, o construtivista Walter Franco, um dos principais nomes da nossa geração de vanguarda, lançou, em 1978, “Berceuse dos Elefantes”, com a concisão precisa de uma lâmina, em contraposição ao aspecto opulento do animal que o inspira. O elefante foi adotado como mascote pelo ABC de Natal como homenagem a seu Estado, o Rio Grande do Norte, cujo formato se assemelha ao animal grandioso.

“Brigando na Lua” (samba de breque, 1979) – Mário Manga
O espírito irreverente e debochado marca a irregular carreira do Premê, grupo que nos primórdios era conhecido como Premeditando o Breque e que finalmente teve a sua obra relançada em um box com sete álbuns, entre eles “Como Vencer na Vida Fazendo Música Estranha: Volume VII”. Segundo colocado no Festival Universitário da TV Cultura, em 1979, com a música “Brigando na Lua”, o Premê nunca foi um conjunto de sucessos populares, embora tenha tocado até em novela da TV Globo, com “São Paulo, São Paulo”, paródia para “New York, New York”. O fato de ter sido desbancado no referido festival da TV Cultura para “Diversões Eletrônicas”, de Arrigo Barnabé, esclarece o lugar que a trupe ocupava na música brasileira. Ao lado de nomes como Itamar Assumpção, Luiz Tatit e Tetê Espíndola, o Premê fez parte da Vanguarda Paulista.

“Clara Crocodilo” (vanguarda, 1980) – Arrigo Barnabé e Mário Lúcio Côrtes
Arrigo Barnabé tomou a cena de assalto dos anos 1980 com proposta completamente diferente àquela que tocava nas rádios e que reviveu a onda do rock nacional naquele período. Fundamentados em sólida formação musical – a maioria das vezes, erudita – grupos como “Rumo”, “Premeditando o Breque”, “Isca de Polícia” e, especialmente Arrigo e Itamar Assumpção inauguraram a vanguarda paulista, com proposta ousada estética e conceitualmente. O experimentalismo era o mote, e entre as influências mais fortes da música de Arrigo estavam a construção dodecafônica e as histórias em quadrinhos. Trocando em miúdos: sofisticado e popular convergiam. Assim ele criou ao lado de Mário Lúcio Côrtes a saga de “Clara Crocodilo”, além de peculiar estilo.

“Nego Dito” (vanguarda, 1980) – Itamar Assumpção
São raros os artistas de vanguarda que não se valem de uma sólida formação pautada na tradição. O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada. Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” (“muita areia para o meu caminhãozinho”) e “Aprendiz de Feiticeiro”. Mas é em “Nego Dito”, lançada no álbum de estreia, em 1980, que Itamar tece este encontro da maneira mais radical. A expressão popular pinçada não poderia ser outra do que “mato a cobra e mostro o pau”.

“Canção Bonita” (vanguarda, 1981) – Luiz Tatit
Originário do francês, o termo “vanguarda” parece ter caído em desuso nos dias atuais, quando se alardeia, em diferentes áreas, a volta do reacionarismo e de uma onda conservadora. Nas artes, a palavra tornou-se sinônimo de “ruptura de modelos preestabelecidos, defendendo formas não tradicionais e o novo nas fronteiras do experimentalismo”, de acordo com o dicionário Aurélio. Ná Ozzetti fez parte de uma das principais bandas da chamada vanguarda paulista, movimento surgido em fins da década de 70 que teve, entre outros, pares da importância de Itamar Assumpção (1949-2003), Arrigo Barnabé, Cida Moreira e Tetê Espíndola, sem falar nos grupos Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Luiz Tatit, fundador do grupo Rumo e autor de “Canção Bonita”, cantada ao lado de Ná em 1981, completa: “O Rumo do primeiro disco tinha alcançado um estilo próprio dentro de um experimentalismo cancional, não propriamente musical, e registrou esse momento”.

“Olhos de Jacaré” (vanguarda, 1982) – Carlos Rennó e Geraldo Espíndola
Tetê Espíndola sempre chamou a atenção pela voz finíssima e o alcance extremamente improvável de seus agudos. Desde o surgimento em território nacional cantou as lendas e motivos de seu povo pantaneiro, o que contribuiu ainda mais para a aura de misticismo em torno de sua figura. Também soube transitar, com habilidade, entre o universo rural e rústico em parcerias com Luhli e Lucina ao construtivismo urbano da música de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, sempre levando consigo as influências de um universo carregado pelo mistério. No ano de 1982, Tetê gravou emblemático disco em que aparecia, na capa, nua tomando banho de cachoeira. Dentre as preciosidades do repertório, “Olhos de Jacaré”, de Carlos Rennó e Geraldo Espíndola.

“Ele Me Deu Um Beijo na Boca” (pop, 1982) – Caetano Veloso
A década de 1980 foi, sim, pródiga em abordar o tema da diversidade sexual, já que o embate com os militares da ditadura no país estava no final, e Caetano Veloso, sempre antenado com sua tropicália, também surfou na onda. Apesar de exibir uma imagem híbrida desde o início de seu aparecimento no cenário nacional foi em 1982, no disco “Cores, Nomes”, que Caetano lançou uma das músicas mais explícitas referentes ao tema; claro à sua maneira. Sem abandonar o mundo de interferências a que alguns consideravam hermetismo em suas canções, o músico já dava seu recado logo no título. “Ele me deu um beijo na boca” acompanhava o discurso endossado pela foto da contracapa do álbum, em que Veloso aparece beijando um homem. Mais uma excelente contribuição de um dos artistas que mais exaltaram as liberdades individuais no país. João Donato, Djavan e Rolling Stones são alguns dos citados na música.

“Bugre” (rock, 1986) – Luhli e Lucina
Ney Matogrosso entrou para o Secos e Molhados por indicação de sua amiga Luhli, que ele conhecia da época em que se virava como hippie com os seus artesanatos. Ela formaria uma dupla de sucesso com Lucina. Em 1986, elas deram de presente para Ney a música “Bugre”, que deu nome a seu LP daquele ano. A gravação do rock ainda contou com a participação de Arrigo Barnabé. Campeão brasileiro em 1978, o Guarani de Campinas, pela origem indígena do nome, adotou o bugre como mascote para jogar no Brinco de Ouro da Princesa.

“Kátia Flávia, a Godiva do Irajá” (funk, 1987) – Fausto Fawcett e Laufer
O universo das histórias em quadrinhos era uma referência nítida e admitida no trabalho que Fausto Fawcett começou a desenvolver na década de 80, quando o termo “performance” ainda não era tão difundido como atualmente. Munido dessas armas e intenções, o compositor carioca criou, ao lado de Laufer, “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, uma personagem peculiar da paisagem urbana, que misturava a malícia, ainda hoje presente no funk carioca, ao papo cabeça relacionado a guerras e mísseis. Não por acaso, a palavra “calcinha” era repetidamente usada, confundindo suas interpretações possíveis. Regravada por Fernanda Abreu, em 1997, a música ganhou videoclipe e um novo fôlego.

“Rolava Bethânia” (rock, 1991) – Chuck Berry em versão de Tavinho Paes
Não deixa de ser irônica a constatação de que, apresentado como cantor e compositor, poucas pessoas conhecessem, de fato, a obra ou alguma música do carioca Serguei (1933-2019). O envolvimento amoroso com Janis Joplin, a propalada fama de pansexual, o uso de substâncias alucinógenas de todo tipo e a autopromoção como uma lenda viva do rock sempre estiveram à frente das demais questões. Sem grandes dotes vocais, o músico apostou na chamada arte performática, e gravou apenas dois discos em toda a trajetória, combinados com compactos dispersos nas décadas de 60, 70, 80, 90 e 2000. A despeito disso, o intérprete conseguiu alguns feitos, como, por exemplo, gravar uma música cuja letra foi escrita, a pedido seu, por Ney Matogrosso. “Lindo Anjo” foi usada como trilha do documentário “Serguei: O Último Psicodélico”, na cena em que o protagonista pratica sexo oral em outro homem. “Rolava Bethânia” já aparece como uma tresloucada homenagem a variados personagens controversos da música brasileira, passando por Lobão, Cazuza e Angela Ro Ro.

“Dor Elegante” (balada, 1998) – Paulo Leminski e Itamar Assumpção
O sempre atento e performático Itamar Assumpção, um dos principais nomes da “Vanguarda Paulista” que invadiu o cenário cultural brasileiro unindo música a teatro e outras inovações mais, foi outro a buscar em Paulo Leminski combustível para a sua arte. Em 1998, no álbum “PRETOBRÁS”, Itamar transformou o poema “Dor elegante”, em canção, ao receber a letra. Diga-se de passagem, essa “transformação” é, quase sempre, apenas a colocação de instrumentos musicais e voz, pois, melodia e métrica quase sempre são presentes em todas as composições de Paulo. Numa das mais sensíveis e delicadas criações de Paulo Leminski, o autor versa com sabedoria e singeleza sobre o valor da vida, e a histórica e até barroca capacidade de, a partir do martírio, nascer a beleza.

“Ser Igual É Legal” (canção, 1999) – Carlos Careqa
“Acho”, canção do primeiro disco, foi bem executada pelas rádios, e “Ser Igual É Legal”, presente no segundo, “Música de Final de Século”, de 1999, emplacou na novela “Anjo Mau”, na voz de Vânia Abreu, irmã de Daniela Mercury, que viria depois a gravá-lo, assim como Chico Buarque, Letícia Sabatella, Mônica Salmaso, e outros. “Chico Buarque é um artista de grande importância na minha vida. Daniela Mercury entrou por tabela pela Vania Abreu, sua irmã. Somos apenas bons amigos”, considera. Outros nomes tiveram e ainda têm relevância expressiva na sinuosa e insinuante trajetória do catarinense Carlos Careqa. Com Arrigo Barnabé, por exemplo, chegou a dirigir um selo, além de participações em shows e parcerias musicais. “Arrigo foi meu padrinho artístico. Mudou minha maneira de pensar música, carreira, etc.”, complementa Careqa.

“Matador de Passarinho” (vanguarda, 1999) – Rogério Skylab
“‘Matador de Passarinho’ nasceu a partir de uma música do Francis Hime e do Chico Buarque, ‘Passaredo’, cuja letra eu perverti. É um trabalho de perversão, que está ligado ao travesti. A ideia de arte contemporânea é essa: acabou a natureza, acabou a ideia original, tudo é manipulado, tudo é pervertido”, anuncia Rogério Skylab, que continua: “Tenho o maior orgulho dessa música por todos os motivos. Não sou ‘Los Hermanos’ que evitava cantar ‘Anna Júlia’. Eu canto sempre ‘Matador de Passarinho’ nos meus shows. E tenho o maior orgulho!”. O músico chegou a apresentar um programa no Canal Brasil com o mesmo nome e, em 2016, compôs, com Livio Tragtenberg, “Matador de Passarinho 2”, em que o protagonista, desta vez, errava todos os tiros com que mirava os passarinhos.

“A Marchinha Psicótica de Dr. Soup” (vanguarda, 2007) – Júpiter Maçã
Rogério Skylab já cansou de se declarar “um cadáver dentro da música brasileira”, frase que ele justifica com o fato de sua extensa obra jamais ter despertado o interesse de intérpretes relevantes. Sem aderir completamente a nenhum movimento ou gênero, mantendo uma postura crítica diante desse cenário, o músico admite pontos de identificação com uma vasta e diversificada gama de artistas, dentre eles Tom Zé e Décio Pignatari. Com “A Marchinha Psicótica de Dr. Soup”, o músico se presta ao papel dos intérpretes que renegaram sua obra, e, mais do que homenagear Júpiter Maçã (1968-2015), coloca o dedo na ferida do estapafúrdio cenário político que tomou conta do país. Por fim, ele dá vazão a um grito incontido na garganta: “Lula Livre!”. Lançada pelo autor em 2007, a canção foi regravada por Skylab em 2019, quando Lula estava encarcerado em Curitiba acusado de corrupção e lavagem de dinheiro.

“Cinema Íris” (balada, 2012) – Luís Capucho e Marcos Sacramento
Quando Cássia Eller o gravou, em 1999, pouca gente procurou saber quem era o autor dos versos de “Maluca”. Quando Ney Matogrosso anunciou que o gravaria em 2013, muita gente foi atrás do homem do “Cinema Íris”. Por conta de versos sobre masturbação e mudanças no projeto, Ney não registrou a música de Luís Capucho. “O disco mudou de rumo, ele achou dificuldade no projeto e não sei se irá retomá-lo”, explica o entrevistado. Natural de Cachoeiro do Itapemirim, no interior do Espírito Santo, Capucho, que é cantor, músico, artista plástico e escritor, não vê ligação da arte que pratica com os outros filhos ilustres do município. “Não sou parte dessa tradição de artistas em Cachoeiro. Não sinto que eu faça parte de um núcleo que a cidade tenha produzido. É uma coincidência”, afirma. Além de Capucho, os músicos Roberto Carlos, Sérgio Sampaio e Raul Sampaio nasceram lá. Capucho também é autor de vários livros.

“De Normal Bastam os Outros” (rock, 2014) – Arnaldo Antunes
O exotismo musical de Maria Alcina, mineira de Cataguases, sempre teve em Carmen Miranda uma de suas principais referências. Por isso, não espanta que o universo teatral e circense a seduza. Em 2014, ao comemorar 40 anos de carreira, Maria Alcina ganhou de presente o álbum “De Normal Bastam os Outros”, com músicas compostas especialmente para ela por Zeca Baleiro, Péricles Cavalcanti, Karina Buhr, Anastácia e outros. A faixa-título ficou a cargo de Arnaldo Antunes, que ofereceu a Alcina um banquete para ela se deleitar com as patacoadas circenses típicas de sua personalidade artística: “De normal bastam os outros/ Vale a pena ver de novo/ Todo mundo vai ao circo/ Gente fina é outra coisa”, entoa Alcina, com a gravidade característica de sua voz singular.

“Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar” (funk, 2014) – Pardal, Wallace Viana e André Vieira
No videoclipe de “Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar”, Valesca Popozuda surge em uma oficina de carro pedindo ajuda e vê os mecânicos babarem sobre seu corpo. O universo é outro na regravação de Cida Moreira, que levou ao funk de Pardal, Wallace Viana e André Vieira uma atmosfera de cabaré. A versão de Cida foi concebida para “Um Copo de Veneno”, programa de televisão dirigido pelo fotógrafo Murilo Alvesso para o Canal Brasil. A abordagem das duas intérpretes não poderia ser mais distinta, e é isso o que torna a experiência rica. “É uma música muito engraçada, sempre transgredi as minhas próprias regras”, declarou Cida, que garantiu ter recebido um telefonema elogioso de Valesca.

“Buceta Bradesco” (vanguarda, 2019) – Rogério Skylab
O etéreo não interessa em nada a Rogério Skylab, concentrado na realidade. A perspectiva do músico diante desse real é o que fomenta a originalidade da sua obra. Essa fisicalidade da vida humana e suas consequências psicológicas e existenciais são abordadas por Skylab sem complacência. “Buceta Bradesco” começa como uma troça à infame inteligência artificial da agência bancária, batizada de Bia, mas, em seu decorrer, a canção com ares de samba sinfônico se revela como uma das mais incisivas e contundentes do repertório de Skylab, ao poetizar com vigor a imagem que almeja a concretude: “É um buraco negro/ Tem gosma, tem sangue/ Tem cheiro, tem pelo/ O seu coração é uma cloaca/ Um buraco no meio e o vazio dentro”.

“Todo Mundo” (vanguarda, 2020) – Rogério Skylab e Livio Tragtenberg
O gosto por trabalhos seriados está expresso em toda a ampla discografia de Rogério Skylab, que começou com “Fora da Grei”, seu único LP, de 1992. A ele, seguiram-se uma dezena de discos da série “Skylab”, sempre no mercado independente, com direito a prêmio quando lançou álbum na extinta revista “Outra Coisa”, do músico Lobão. Depois de mais duas trilogias (dos Carnavais e do Cu), Skylab iniciou a “Trilogia do Cosmos”, em que apresentou a faixa “Todo Mundo”, parceria com Livio Tragtenberg presente em “Os Cosmonautas”, segundo volume da série. A música lança mão de uma extensa e belíssima introdução instrumental, sem renegar as estranhezas inerentes à persona artística de Skylab, antes de adentrar o terreno das palavras com igual precisão.

Foto: Site oficial de Itamar Assumpção/Divulgação.

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Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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