A Música & O Gongo de Ary Barroso

*por Raphael Vidigal

“Mas, se houvesse em algum lugar um ser belo e forte, uma natureza valorosa, simultaneamente repleta de exaltação e de refinamentos, um coração de poeta sob uma forma de anjo, lira com cordas de bronze, soando em direção ao céu epitalâmios elegíacos, por que ela não haveria de encontrá-lo por acaso?” Gustave Flaubert

Era só o gongo começar a soar que você saberia que ele estava em cena, com seus óculos circulares, seu bigodinho aparado e sua voz polêmica. Mas o gongo nunca soou para ele, um dos poucos que passaria impune a seu rigor seletivo. Ary Barroso do Brasil nasceu no interior de Minas Gerais, cresceu na capital do Rio de Janeiro e se apaixonou pelo cartão postal do Nordeste: A Bahia. Para ela compôs as mais passionais confissões, para o Rio de Janeiro as mais otimistas e se lhe perguntassem se ele nunca compôs para a terra onde nascera diria com humor ácido: “Afogue a saudade nos copos de Ubá”. Muitas lendas e folclores se perpetuaram sobre sua figura mítica, um dos símbolos de um Brasil musical que ele defendia com unhas, dentes e microfones. Fosse narrando os jogos do Flamengo ou acompanhando Carmen Miranda ao piano, Ary Barroso sempre esteve ao lado das bandeiras mais populares do seu país. E talvez seja ele a maior de todas elas.

Aquarela do Brasil (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso
Dois dos maiores defensores da música brasileira romperam laços por conta da “Aquarela do Brasil.” Tudo porque o samba-exaltação composto por Ary Barroso em 1939 não venceu o concurso promovido pelo maestro Heitor Villa-Lobos no ano seguinte. A música urdida ao piano em uma noite chuvosa do Rio de Janeiro logo recebeu as críticas do cunhado de Ary, que questionou qual coqueiro não dava coco, e revelou-se em seguida carro-chefe da caravana cheia de balangandãs e reis congos que percorreu os Estados Unidos. Por ocorrência da “política de boa vizinhança” promovida por seu país, o cineasta Walt Disney veio parar em terras brasileiras e descobriu por aqui o balanço do samba. Encantou-se com a miscelânea de Ary Barroso e a escolheu para trilha sonora do filme que tinha Zé Carioca no papel principal, a animação “Alô, Amigos”.

No país norte-americano, a música ganhou novo título: “Brazil”, e versos em inglês escritos por Ray Gilbert. Exemplo maior da maneira entusiástica e efusiva com que Ary costumava se pronunciar, “Aquarela do Brasil” é clássico irretocável do cancioneiro brasileiro, e chegou a ser conclamada a Hino Nacional alternativo, tamanha adoração popular. Sucesso imediato na voz de Francisco Alves, foi lançada por Araci Cortes e incluída no espetáculo “Joujoux e Balangandãs” na voz do barítono Cândido Botelho. Os arranjos criados por Radamés Gnatalli, com um piano imitando o som de tamborins, e a percussão comandada por Luciano Perrone contribuíram decisivamente para abarcar ainda mais grandiosidade à “saudação eterna” de Ary Barroso, como ele próprio dizia. Sobre a façanha, Radamés comentou: “Esse negócio não é meu não. É do Ary Barroso. Eu apenas botei no lugar certo. O Ary queria que eu usasse o tema nos contrabaixos, mas não ia fazer efeito nenhum. Eu então botei cinco saxes fazendo aquilo. O que eu inventei foi o arranjo pra botar a sugestão no lugar certo”. E assim consagrou-se a canção e o ritmo inventados por Ary, que entremeava um falar rebuscado a expressões simples, destacando a paisagem límpida brasileira. Em 1955, ao receber a Comenda da Ordem do Mérito Nacional ao lado de Heitor Villa-Lobos, ficou sabendo que perdera o concurso para David Nasser porque este passava por dificuldades financeiras, e o maestro resolvera ajudá-lo. Reconciliou-se com o colega e os dois se abraçaram festejando a aquarela de cores do Brasil, preciosa e rica como os coqueiros que costumam dar coco em algumas terras.

Faceira (samba, 1931) – Ary Barroso
O menino Ary Evangelista Barroso se viu órfão aos sete anos, e foi morar com a avó Gabriela e a tia Ritinha. Começava ali, o “turbilhão de sua vida”, em suas próprias palavras. A tia foi quem lhe ensinou a tocar piano. Com dois pires colocados sobre as mãos, aprendeu a equilibrar as notas para fugir dos castigos. O talento perene o levou a acompanhar a professora em sessões do cinema mudo, fazendo o fundo musical de comédias e dramas. Tinha então doze anos, e levaria consigo as lições aprendidas para o Rio de Janeiro, onde rumara para cursar Direito. Em 1922, reprovado pela advocacia, foi aprovado pela música. De pianista do cinema Íris passou a ser integrante de orquestras. Após algumas composições sem muito alarde, com exceção de “Vamos deixar de intimidade”, gravada pelo colega de curso Mário Reis, ganhou o primeiro lugar do concurso de carnaval promovido pela Casa Edison, em 1930, com a música “Dá Nela”. Um ano depois, seu primeiro grande sucesso: “Faceira”, samba esperto que segue o requebrado da mulher da história. Gravada pelo iniciante Silvio Caldas, que inventou o breque da música, o cantor teve que repeti-la oito vezes durante a apresentação no Teatro Recreio, refém da empolgação da platéia.

No tabuleiro da baiana (samba-batuque, 1936) – Ary Barroso
Carmen Miranda foi a cantora que mais gravou Ary Barroso, ao todo 30 composições. Os dois se conheceram através da música e dos laços matrimoniais. Carmen era amiga da esposa de Ary e praticamente madrinha de sua filha. Quando os dois viajaram juntos para os Estados Unidos, em virtude do sucesso que faziam por lá, espalhou-se no Brasil um boato de que iriam se casar. A relação entre eles começou em 1931 e gerou diversos frutos para a música brasileira, entre eles “No tabuleiro da baiana”, de 1936. O samba-batuque, também chamado de samba-receita ou samba-jongo, foi vendido pelo autor para Jardel Jercolis utilizar no Teatro de Revista, em interpretação da dupla Déo Maia & Grande Otelo. Quando Ary Barroso espantou-se com o sucesso do número resolveu pegar de volta o filho que era seu, apadrinhado por Carmen Miranda e Luís Barbosa em gravação primorosa que contou com o acompanhamento do Regional de Pixinguinha e Luperce Miranda e os improvisos bem colocados pelo cantor. Misturando elementos típicos da cultura baiana ao amor e ao samba e tornando-os definitivamente parte da mesma receita, Ary Barroso criou um dos pratos mais famosos da culinária musical. Suas inovações estilísticas começavam a se sobressair na voz da “Pequena Notável.” Porém o casamento entre o compositor e a cantora não passou de imaginação do povo brasileiro.

Camisa Amarela (samba, 1939) – Ary Barroso
Todos temiam o gongo do “Calouros em Desfile”, programa criado por Ary Barroso que transformou-se no maior marco do gênero. Nele se apresentaram nomes como Ângela Maria, Lúcio Alves, Elza Soares, que deu uma resposta enviesada para o apresentador, e até Dolores Duran, que temeu críticas por sua voz doce. Todos passaram pelo crivo de Ary Barroso. Desfilaram na passarela exibindo vozes que brilhavam tanto quanto a “Camisa Amarela” que Aracy de Almeida cantou em 1939, segundo Ary Barroso sua melhor escolha de intérprete para uma música sua. A canção foi uma das poucas cantadas em disco pelo próprio Ary Barroso, e conta a história do folião que se perde na avenida e volta para casa cansado, um trapo, pedaço de gente para sua amada. Além disso, a letra cita sucessos carnavalescos da época, “Florisbela” e “A Jardineira”.

Na batucada da vida (samba, 1934) – Ary Barroso e Luiz Peixoto
O Flamengo foi o primeiro time a ter seus gols comemorados no rádio através de uma gaita. Invenção do fanático Ary Barroso, que não se preocupava em disfarçar o amor pelo clube. Fazia de tudo, invadia o campo, xingava o juiz e até recusava propostas de se mudar para o exterior, sob a alegação: “Lá não existe Flamengo de Futebol e Regatas”. Anos mais tarde, em 1960, ele se tornaria vice-presidente do departamento cultural e recreativo do clube. Nascido desse estilo acalorado, tomou forma um samba que teve na passional Elis Regina sua intérprete mais festejada. A música foi lançada por Carmen Miranda em 1934 e regravada por Dircinha Batista em 1950, com acompanhamento de Ary Barroso ao piano. “Na batucada da vida” relata as batalhas de uma mulher destemida.

Risque (samba-canção, 1952) – Ary Barroso
Ary Barroso era árduo partidarista da música brasileira, do samba na sua essência. Recusava candidatos que se atravessem a cantar músicas estrangeiras em seus programas e não hesitava em espinafrá-los publicamente. Em 1952, resolveu criar um samba-canção a despeito de provar que era capaz de compor naquele gênero considerado mais elevado. Para ele, o samba sempre foi a menina dos olhos, e por isso brigou com autoridade para que sua música não fosse gravada em ritmo de bolero. “Risque” foi lançada por Aurora Miranda e virou clássico a partir da gravação de Linda Batista em 1953. O cronista irônico desfiava seu olhar sobre os relacionamentos dramáticos: “Risque, seu nome do meu caderno, já não suporto o inferno, do nosso amor fracassado…”.

No Rancho Fundo (samba-canção, 1931) – Ary Barroso e Lamartine Babo
Luiz Peixoto, Noel Rosa e Vinicius de Moraes foram alguns dos que tiveram o privilégio de compor com Ary Barroso. Acostumado a criar letra e música sozinho, ele abria raras exceções para parcerias. Numa dessas, Lamartine Babo resolveu se intrometer a mexer na letra de J. Carlos, sobre música de Ary. “Na Grota Funda” perdeu o título original e recebeu versos mais inspirados: “No Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo, onde a dor e a saudade, contam coisas da cidade”. A canção gravada por Elisa Coelho, em 1931, passou a se associar indistintamente a lembranças de um lugar tranquilo e sereno que o tempo se encarregou de varrer. Nos anos seguintes foi regravada por Silvio Caldas e Isaura Garcia. Como resultado, Ary Barroso ganhou o desafeto de J. Carlos e presenteou a música brasileira com uma parceria consagrada.

Isto aqui o que é? (samba, 1942) – Ary Barroso
Antes de ser eleito vereador do Rio de Janeiro, pela UDN em 1946, Ary Barroso já travava disputas políticas. Tornou-se um dos primeiros presidentes da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores da Música, e encampou desde cedo a luta pelos direitos autorais. Já instituído no cargo, brigou com Carlos Lacerda, único vereador com votação superior à sua, para que fosse construído o estádio do Maracanã. Aliou-se aos comunistas, maioria da bancada, e como era de seu feitio, conseguiu o que queria. A tragédia presenciada naquele estádio, na final da Copa do Mundo de 1950, abafava os versos de uma canção composta por Ary Barroso em 1942. Mas o palco verde que ele desejara ainda cederia espaço muitas vezes para a alegria, a raça, as morenas e as sandálias, de uma “raça que não tem medo da fumaça, e não se entrega não”. “Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil Iá, Iá…”

Na Baixa do Sapateiro (samba-jongo, 1938) – Ary Barroso
A Bahia foi o grande amor paisagístico de Ary Barroso. Por ela se embeveceu ao excursionar com orquestra da qual participava em 1929. E a cidade nunca mais saiu do seu pensamento, recebendo várias homenagens emocionadas. A mais famosa delas é “Na baixa do Sapateiro”, segunda música mais gravada da lavra de Ary Barroso, perdendo somente para a patrimonial “Aquarela do Brasil”. O título é inspirado no nome popular de uma rua de Salvador, e serviu de mote para que Ary pudesse suspirar um encontro afetuoso entre ele e uma morena frajola. Com início retumbante e desenrolar mais ameno, a música chamou a atenção novamente dos produtores americanos, e foi incluída em mais um filme de Walt Disney, “Você já foi à Bahia?”, com título modificado para o nome do local citado. Todo o encantamento em torno da música rendeu a Ary Barroso novos convites para trabalhar nos Estados Unidos, em sintonia com Carmen Miranda, que a lançou. Os planos não deram certo, desentendimentos e desencontros certificaram para Ary Barroso que ele pertencia mesmo à Bahia, ao Brasil.

Folha Morta (samba-canção, 1953) – Ary Barroso
A boemia capturou Ary Barroso na primeira noite que ele chegou ao Rio de Janeiro. Acabou gastando todo o dinheiro ganho da herança de um tio. Por essas andanças noturnas fez amigos e parceiros, entre eles o compositor e cronista Antônio Maria, autor de “Ninguém me ama”, grande sucesso de 1952 na voz de Nora Ney. De personalidade difícil e tempestuosa, Ary pediu para Maria cantar “Aquarela do Brasil, e ele assim o fez na íntegra. Em seguida disse para Antônio pedir que ele cantasse “Ninguém me ama”. Mesmo desconfiado, o autor do estouro atendeu, ao que Ary respondeu debochando: “Não sei!”. No ano seguinte, Dalva de Oliveira gravou em Londres, com a companhia de Roberto Inglez, “Folha Morta”, clássico samba-canção sobre as desventuras do protagonista, eternizada nos versos: “Oh Deus, como sou infeliz”. A mesma música gerou nova ironizada de Ary Barroso, que direcionou suas farpas para Jamelão quando o sambista errou a letra, e cantou “mostrar minhas penas” no lugar de “matar minhas penas”. A resposta de Ary veio sem perdão: “Jamelão, você nunca reparou que eu sou implume?”

Maria (samba-canção, 1932) – Ary Barroso e Luiz Peixoto
A mulher de toda a vida de Ary Barroso foi Ivone Belfort. Conheceram-se quando ela tinha 13 anos, numa das pensões em que o pianista iniciante se hospedava no Rio de Janeiro. Puderam se casar em 1930, com o dinheiro do prêmio ganho pelo compositor. Com ela, Ary teve seus dois filhos, Mariúza e Flávio Rubens. “Maria”, talvez a música mais romântica de Ary Barroso, provavelmente tenha recebido esse nome para servir de fundo a vários casais apaixonados. O nome que principiava na mão de Ary Barroso era Ivone. A música foi lançada por Silvio Caldas, dois anos após o casamento.

É luxo só (samba, 1957) – Ary Barroso e Luiz Peixoto
Muitos causos se propagaram sobre Ary Barroso, aquele homem ranzinza, esguio. Aquele compositor brilhante. O radialista de terno alinhado e gravata arrumada. O locutor destemperado e intempestivo. O comandante de programa de calouros mais mal humorado e temido. Ary Barroso era possuidor de caráter irreversível, e só se deixava transpor pelas águas dos rios. Exaltava a aquarela brasileira e o ritmo do samba de direito. Formou-se em advocacia, mas nunca exerceu. Seu legado foram as notas e os versos. Em 1957 foi homenageado em vida, com o espetáculo “Mr. Samba”, produzido por Carlos Machado. Em 1964, receberia mais louros, com o desfile da escola de samba Império Serrano. Não viu, se despediu no mesmo dia à noite. Antes, em outra passagem folclórica de sua história, teve tempo de ligar para o amigo David Nasser do hospital, e sentenciar com sua mordacidade: “Estou me despedindo. Vou morrer. Estão tocando minhas músicas no rádio.” A mesma que desferiu contra um calouro que ousou dizer que cantaria um “sambinha” em seu programa: “É sempre assim. Se fosse mambo, não seria um mambinho. Se fosse bolero, não seria bolerinho. Mas samba é um sambinha. E que sambinha o senhor vai cantar?”. A música era “Aquarela do Brasil”. Desbocado algumas vezes, ríspido quando podia, sempre perpetuando sua aura, Ary Barroso compôs com Luiz Peixoto seu último sucesso, em 1957, adornado por um título demonstrativo à sua obra: “É luxo só”.

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Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 07/11/2010.

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Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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