“… as xícaras de chá chocalhantes se transformariam nos sinos tilintantes das ovelhas, e os gritos agudos da Rainha na voz do menino pastor… e os espirros do bebê, o grito do Grifo e todos os outros barulhos esquisitos se tornariam (ela bem o sabia) o clamor confuso do campo em atividade… ” Lewis Carroll
O auditório está de pé para apreciar a disputa entre duas vozes agudas que se elevam com categoria. Ao microfone da rádio elas se apresentam com a elegância de quem sabe ser majestade, e as bandeiras flutuantes na platéia alardeiam seus nomes, suspensas por exasperados fã-clubes que não se contentam em elegê-las somente rainhas das canções, promovendo uma histórica rivalidade. No topo mais alto da música, que és o lugar de direito, lá vem Marlene, pinta sob a boca, nariz em riste, lata d’água na cabeça. Lá vem Emilinha com a mesma pinta, bem aprumada, despertando reações escandalosas. Nossas Rainhas Soberanas exibem charme e som de primeiríssima nobreza.
Lata d’água (samba de carnaval, 1952) – Luis Antônio e Jota Júnior
“É a maior!” gritam os enunciados e admiradores da cantora que se apresenta no programa de Manoel Barcellos. E de fato, ela faz jus à exaltação. Marlene veio ao mundo Vitória e pisou na passarela de notas e versos já com a inspiração da atriz alemã que lhe emprestou o nome artístico. Caminhou sempre com nitidez de passos e o espetáculo que concede desde o início tornou-se sinônimo de autenticidade. Marlene tem no cantar uma marca que é só sua, própria, e inalcançável. E é com essa força da personalidade que ela dá vida à Maria do morro de Luis Antônio e Jota Júnior, no carnaval de 1952 que está gravado na batalha diária, sob o clamor que anuncia Marlene:
“Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro não se cansa
Pela mão leva a criança, lá vai Maria”
Qui nem jiló (baião, 1949) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
Marlene teve carreira internacional, sendo levada, em 1959, a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris, pela diva francesa Edith Piaf. Mas foi em solo brasileiro que ela consolidou suas maiores conquistas, atuando em teatros, musicais e shows históricos, como o invejável “Carnavália”, protagonizado ao lado de Blecaute e Nuno Roland e planejado pela cronista Eneida. Na opinião de muitos, o maior espetáculo de carnaval que o Rio de Janeiro teve a honra de receber. E nessa brasilidade cativa que exerce, Marlene apreciou canções românticas e polcas com a mesma integridade que utilizou em sambas tornados imortais. Foi responsável, inclusive, por realizar uma das primeiras gravações da obra de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, com a companhia do grupo vocal Os Cariocas, o baião “Qui nem jiló”, em 1949:
“Se a gente lembra só por lembrar
O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer, que é feliz sem saber”
Mora na filosofia (samba, 1954) – Monsueto e Arnaldo Passos
A Favorita da Aeronáutica mantinha uma disputa externa com a Favorita da Marinha. As brigas, levadas frequentemente à cena pela ação dos fã-clubes, frutificaram em belas gravações em dupla de Marlene e Emilinha Borba. As duas rimaram guerra e paz como Monsueto e Arnaldo Passos rimavam amor e dor na moradia que construíram na filosofia. O samba de 1954 possui uma das mais bem acabadas letras da canção popular brasileira, sinalizando a deixa perfeita para uma intromissão oportuna do homem que grita em meio aos batuques: “Tá na cara!” Ao que Marlene antecede os versos: “Se seu corpo ficasse marcado, por lábios e mãos carinhosas, eu saberia, a quantos você pertencia, não vou me preocupar em ver, seu caso não é de ver pra crer.” Diamante lapidado que se abrilhanta na voz de Marlene, artista completa que oferece seu talento estelar onde canta.
“Eu vou lhe dar a decisão
Botei na balança, você não pesou
Botei na peneira, você não passou
Mora, na filosofia
Pra quê rimar
Amor e dor?”
Raphael Vidigal
Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 28/11/2010.
16 Comentários
Oh querido, que maravilha
Claro, vamos compartilhar
Gostei, mais um pedacinho de cultura.
Amigo Raphael Vidigal, obrigado! Sentindo ainda muito a partida da Rainha Marlene.
Muito bom!
Tive a oportunidade de curtir muitos filmes com a participação da Marlene
Gostei, Raphael! Compartilhei. Um abraço!
Opa!
maravilha!
Gostei do vídeo.
Maravilhosa Marlene. Enquanto teve espaço, jamais ficou estagnada. Buscou novos talentos, sempre ousando e inovando. Ao contrário de muitas contemporâneas dela, nunca teve medo de arriscar no repertório.
Obrigado por esta pérola!
Complementou em muita coisa o que lembrava sobre esta maravilhosa artista da minha infância. Obrigada!
Parabéns!
Maravilhosa.
S2
Bem legal essa matéria!
Marlene Cantava. Mto. Bem .
As. Musicas. Que. Mais. Ficaram. Na. Memória , foram: “”Lata. D’água. , na cabeça …..”” E. Zé. Marmita “”