A avó e o neto

*por Raphael Vidigal

“ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades
de sono se depositam sobre a terra esfacelada.
Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música” Carlos Drummond de Andrade

há uma inocência em seu rosto de quem detém o segredo da felicidade e tem tão pouco tempo de vida como chegou até aqui as mãos tentam agarrar o que veem mas sem habilidade para capturar o invisível que brilha dentro dos olhos cada passo é uma conquista os pés tremem feito vara verde avançam obstinados mas são sensíveis ao primeiro vento se sopram os lábios as orelhas arrepiam o que escutam vem de dentro da alma ou do fundo do estômago é fome de viver ou medo de ficar sem a proteção do colo quente e o peito macio que os recebe parecem uma criança mas são mais sábios que o arco da velha um mosquito que zumbe concentra toda sua atenção é um momento eterno porque único no instante seguinte a eternidade cabe no centro de um pacotinho de meias olha vazio para além das coisas e ultrapassa a realidade a madeira inflexível é tão elástica quanto supõe sua vontade

olha cheio como uma melancia madura e molha tudo com sua baba úmidas as pequenas circunstâncias reluzem prestes a explodir na miragem de oceanos poças chuvas e pozinhos no canto da sala delira com o mundo que não parece feito de açúcar não parece feito de nada tem o peso do seu futuro com o aspecto da sua saudade a mão que busca o cabelo se enrola em um tempo estático e esse presente é inviolável bambeia pra frente e pra trás sem saber o que vai acontecer arma o choro que se desfaz com um simples movimento de cores pássaros surgem na franja da luz é o cabelo do sol espocam amarelo vermelho laranja sob o prisma da retina morna ganham consistência de pão sem a tentação da manteiga iluminadas pela manhã as bochechas incham como uma gema mole balões recém-enchidos com a tenra maciez e suculência das maçãs se alguém as espetasse agora transbordariam rios e cachoeiras

o néctar melado e doce dos melões ou o fio amarelo de um ovo na frigideira pelando o fulgor das jabuticabas na estação das chuvas como barriga de grávida em brasa derrete a sua carne espessa e lânguida e os dedos levam para a boca chupam mais do que mordem retém contrai expele o que possui num arroto saudável cheio de fibra e musgo no fundo da garganta o desejo captura o impalpável e o riso converte-se em lágrima de felicidade no meio da tarde ignoram as horas não há justificativa para o trabalho quando a vida é pouca o sofrimento passa irrita zumbe mas não suporta uma traquinagem a careta de língua pra fora o barulho que é o maior do mundo porque é tudo o que o corpo faz nem a vergonha tem espaço nem as necessidades básicas escapa um ar do bumbum e preenche a letargia matutina com esse som em zigue-zague cai o ponteiro da noite a escuridão se acentua

quanto tempo passou desde o 1º choro pra quem já teve sangue em seu corpo e mamou o leite no bico de um fruto novo tudo é o primeiro susto o outono varre as folhas que queimaram no sol para os olhos elas são amarelo vermelho laranja mas sem nome e o que vem depois talvez algo inédito talvez uma coleção daquilo que juntara ou talvez não venha nada se retorne ao começo no fim das máscaras das ilusões antes havia muito ou algo parecem grãos que alguém passa e cata e joga para o alto na esperança que o calor os aqueça e o frio os condense livres dão para milho na espiga de folhas ásperas gelo lapidado em seu escudo de vidro a superfície amarela do fio no cacho entre cabelos retorcidos da casca tem a frescura congelada do orvalho seco na camada vítrea que o envolve a pele transparente do espelho duro e cristalizado reflete o que o invade olha dentro e vê o que acha

ofega de emoção diante do enigma claro se tem fome come se tem sono dorme é um animal com seus músculos e ossos sem o sexo para cansá-lo não compreende a maldade pega com uma mão e com a outra solta o que a flor exala o perfume do tédio sem angústia pode engolir o sorvete que cria pequenas nações de iglus em sua parede do estômago nem precisa de dentes soluça espasma aperta com força mas tudo passa embora fique guardado na memória caixinha de promessas um relicário o medo que infla de dentro pra fora tem feições enormes mas é só o pus do umbigo que foi cortado e apesar do enterro ainda nos assombra a cicatriz logo imitará um raio que parte em minúsculas lembranças o mosaico da história pinta e borda o quadro rebelde à moldura círculos quadrados losangos borboletas hipotenusas de borracha na banheira do tamanho matemático de uma piscina imaginária

onde as mágoas são bolhas nas lupas de olhos recém despertos as tintas alcançam formas com rabos tentáculos miríades galhos em cada um se assenta uma decepção e o almoço de hoje tem gosto do passado cada segundo traz no casulo uma lagarta goteja na porcelana do prato o aroma das mangas na árvore um mel quase enjoativo de tanta plenitude é pólen no âmago das abelhas e a bojuda alça da xícara com o chá das plantas inertes em meio às águas inquietas ansiosas querentes ignorantes do jejum pálido das terras areias desertos cheios de cactos reféns do oásis nutre o desespero das formigas e adensa o retrato com o cântico das cigarras na pré-agonia do impacto que comprime a alma contra o cimento e o tijolo alaranjado a barba de um leão envolvida pelo plástico das mazelas e penitências diárias ao raiar do dia ao bulir da noite

ao espanto do trovão fantasiado de brilho da tarde numa sequência de bolinhas de gude se rebatem e estabacam no chão de puro aço num efeito dominó e cortam com a profundidade da lâmina os sonhos e a realidade de dentro observam de fora a esfera de placenta e algodão onde foram colocados por obra de deus ou do diabo cujo único pedido de socorro que entendem são os soluços e as lágrimas de sal no mar azul quase veludo fofo compacto e indevassável os pecados coexistem aos perdões e as pedras atiradas falsas matilhas de lobos a uivar para a aurora crepuscular da ânsia de vômito que expulsa e limpa o estômago de gosma e da virtude a câimbra imobiliza o amanhã vira uma camisa de força o amor e ao se soltar duvida do que deixo para trás a ponte desabou com unhas e manias de cuspir bocejar reter o cheiro o gosto a impressão do bloco maciço e indevassável onde não se penetra

e acolhe com a distância do espaço entre um membro e outro separando a ponta dos cascos deixando a aresta exposta nua como uma gelatina e do pudim a calda que só derrama mas não se mistura ainda que por entre os poros se instale permanecem uma e outra coisa alheias e distintas na extremidade do nariz uma verruga e o crespor do que é rijo na barriga de gases dum balão flutuante como as maçãs do rosto sincero sem disfarce porém fantasioso crente nas magias de deus e das fadas de desenhos e objetos inanimados que se movem e correm porque há tão pouca vida que o mais lento dos movimentos acontece rápido no estalar de um chicote e no lombo do cavalo do escravo faminto que aceita a verdade inventada e muda o itinerário faz café da sombra e suco do marasmo miasmas estalactites estripulias rebuliços das ancas frágeis e um coração na agulha do arrependimento

espetado um fígado preso por hastes de papelão molhado derrete-se a cada pingo da calda de chocolate recém saída do forno borbulhando e cheirando a gula da paixão que se apaga quando a vela chega a resina ao grau do mais simples e mais básico na origem do choro cândido e do espasmo de raiva compreende o latejar do coração no poste que pisca a cada esperança a vida e a morte se unem num balanço demoníaco e projetam um futuro inviável graças ao sadismo das especulações uma sabe da outra tanto quanto gêmeas siamesas cortadas divididas por uma faca cirúrgica e esterilizada a íris na pupila gruda uma pasta modorrenta como uma infecção que debate-se ao ritmo das asas de uma libélula presa na teia duma aranha bojuda que se aproxima mecanicamente e gélida mutila para depois mastigar e engolir parte por parte

com a devoção do padre que cola no céu da boca a hóstia sagrada o corpo de cristo o vinho o sangue espesso descendo pelas pernas e encontrando na outra extremidade a boca dos chacais mantida do pescoço ao ânus um arrepio que acorda a alma e o que existe de músculos nesse corpo frouxo flácido que existe como o que está por vir e o que houve de terreno e misterioso roxo no frio que racha o crânio e no vinho do rachar das uvas prenhes da certeza do vinho dando vida ao que está morto e morte para os que vivos foram de esperança desejo e ciúme a avó e o neto brincam sem precisar da palavra

Pintura: Obra de Marc Chagall.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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