*por Raphael Vidigal
“Ah, se eu pudesse escrever com os olhos, com as mãos, com os cabelos – com todos esses arrepios estranhos que um entardecer de outono, como o de hoje, provoca na gente.” Caio Fernando Abreu
A estação das folhas caídas ao chão, que promete um clima ameno e marca a passagem entre o verão e o inverno, apesar de suas características peculiares e, habitualmente, associadas à tristeza e à desolação, também foi cantada em verso e prosa na música brasileira. O outono costuma ser identificado com um sentimento de introspeção e recolhimento, sendo propício para a reflexão. Nessa toada, compositores como Paulinho da Viola, Djavan, Rosa Passos e Billy Blanco se inspiraram para criar clássicos escondidos da nossa música brasileira. E a tradição segue, com novas revelações de uma geração vindoura.
“Outono” (samba-canção, 1952) – Billy Blanco
Se alguém disser de certo William Blanco, paraense da capital Belém, formado em arquitetura, poucos ligarão o nome à pessoa. Até por que Billy Blanco não era acostumado ao óbvio. Dono de uma dicção única na canção popular tornou-se peça fundamental no quebra-cabeça da bossa nova, do sambalanço e do modo de falar carioca. Teve sucessos gravados por Dick Farney, Lúcio Alves, Dolores Duran, Isaurinha Garcia, Silvio Caldas, isto sem falar nas diversas regravações por nomes da geração posterior, como Elza Soares, Caetano Veloso e Roberto Carlos, só para citar alguns. Em 1952, Dolores Duran lançou o delicado samba-canção “Outono”, regravado por Nina Becker…
“Folhas de Outono” (balada, 1967) – Francisco Lara e Jovenil Santos
Roberto Carlos nasceu na pequena cidade de Cachoeiro do Itapemirim, no interior do Espírito Santo, no dia 19 de abril de 1941. Começou a cantar ainda na cidade natal, antes de rumar para o Rio de Janeiro, onde, na década de 1950, se tornou o principal nome da Jovem Guarda. Ali, ele já era um fenômeno midiático que conquistava fãs ao redor de todo o Brasil. A guinada para o romantismo aconteceu nos anos 1970, quando Roberto atingiu a maturidade artística. Antes disso, mas já nesse movimento, lançou, em 1967, a balada “Folhas de Outono”, de Francisco Lara e Jovenil Santos. Ali, Roberto Carlos asfaltava sua passagem da Jovem Guarda para as baladas românticas.
“Oração de Outono” (choro, 1976) – Paulinho da Viola
O mais apegado à tradição da geração de músicos que despontou na década de 70, Paulinho da Viola nem por isso deixou de inovar em sambas como “Roendo as Unhas”, “Para Ver as Meninas” e “Sinal Fechado”, hino contra a ditadura militar no auge da censura, que ganhou uma interpretação emblemática e deu nome a disco de Chico Buarque, lançado em 1974. Filho de César Faria, histórico violonista do conjunto de choro Época de Ouro, Paulinho, desde cedo, reverenciou o passado em suas composições, sem perder de vista o olhar para o presente. Como ele mesmo diz: “Meu tempo é hoje”. Em 1976, no álbum “Memórias Chorando”, Paulinho lançou o choro “Oração de Outono”.
“Outono” (MPB, 1992) – Djavan
Djavan não tem jeito. Não tem outro e não tem igual. Nascido em Maceió, o músico alagoano cravou a sua assinatura na música brasileira com um estilo facilmente reconhecível, que despertou a curiosidade de gerações desde o seu surgimento até os dias atuais. Com uma levada única calcada no samba e uma poesia de alto teor simbolista, ele conseguiu o difícil feito de unir sofisticação à popularidade, alcançando sucessos nas rádios com músicas como “Fato Consumado”, “Flor de Lis”, “Meu Bem Querer” e “Açaí”. Exaltado por Caetano, ele virou parceiro de Chico Buarque e foi gravado por Bethânia e Gal Costa. Em 1992, no disco “Coisa de Acender”, Djavan lançou a bela canção “Outono”.
“Outono” (MPB, 1993) – Rosa Passos e Fernando de Oliveira
Baiana de Salvador, Rosa Passos foi imediatamente comparada a João Gilberto quando surgiu para a música brasileira com seu violão cheio de suingue e a voz delicada, doce, colocada com precisão sobre a melodia. Uma das mais requintadas instrumentistas e compositoras da música brasileira, ela logo traçou caminho próprio e cravou seu nome com destaque no cenário nacional. Em 1996, encontrou-se com Sérgio Natureza para compor o samba-bossa “Gesto”, que, com a habitual sofisticação, elabora comparações entre o gesto de dar à luz uma vida com o gesto de gestar uma canção. É poesia pura. Antes, em 1993, compôs com Fernando de Oliveira e irresistível “Outono”. Hit…
“Outono no Rio” (jazz, 2000) – Ed Motta e Ronaldo Bastos
Ed Motta se definia como “um velho de 50”, quando, aos 18 anos, se casou com uma mulher que tinha bem mais idade do que ele. Agora, o sobrinho de Tim Maia chega, de fato, à casa dos cinquentenários, com um rol de polêmicas que só não faz inveja a nomes como Lobão e Karol Conká na música brasileira. Carioca, Ed estreou na carreira em 1988 em álbum com a banda Conexão Japeri, que trazia “Manuel” e “Vamos Dançar”, dois dos maiores sucessos da sua carreira. Foi exatamente “Manuel” que Ed afirmou que se recusaria a cantar, em uma de suas postagens que mais despertaram polêmica nas redes. Talentoso, lançou, no ano 2000, o jazz “Outono no Rio”, com Ronaldo Bastos…
“Chuva de Outono” (MPB, 2001) – Zé Caradípia
Quem não associar Zé Caradípia aos compositores da MPB, mudará de ideia quando se falar na música “Asa Morena”, que esse gaúcho de Canoas compôs na década de 1980, quando viu o seu nome estourar em todo o Brasil graças à gravação inesquecível de Zizi Possi para essa toada sensível, de inspiração nortista, que fala sobre um romance brejeiro e inocente. Infelizmente, Zé Caradípia pode ser associado àqueles artistas de um sucesso só, já que não voltou a frequentar as paradas de sucesso nem a ter seu nome listado nas grades radiofônicas. O que não o impediu de, em 2001, lançar a bonita canção “Chuva de Outono”, versando sobre a estação conhecida pelas folhas caídas…
“Outono” (MPB, 2004) – Cláudio Venturini e Sérgio Vasconcellos
Mineiro de Belo Horizonte, Cláudio Venturini é um dos fundadores do grupo 14 Bis, ao lado do irmão Flávio Venturini. Antes, ele participou do grupo A Via Láctea, ao lado do amigo Lô Borges. Mas foi a partir de 1979 que a carreira deslanchou. Guitarrista e compositor, Cláudio assumiu os vocais do conjunto 14 Bis quando o irmão, Flávio, partiu em carreira-solo e, desde então, se aperfeiçoou no ofício. Desde 1987 nessa função, Cláudio também se tornou um dos principais compositores da banda, como revela a canção “Outono”, parceria com Sérgio Vasconcellos, escritor, professor e doutor em Música. “Outono” foi lançada no álbum “Outros Planos”, de 2004, embebida em lirismo.
“Outono Aqui” (MPB, 2005) – versão de Chico César
O paraibano Chico César nasceu em Catolé do Rocha, no sertão do Estado, no dia 26 de janeiro de 1964. Aos dezesseis anos, mudou-se para a capital João Pessoa e formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mas o destino de Chico César estava na música. Já na universidade, ele entrou para um grupo de poesia de vanguarda. Com 21 anos, decidiu se mudar para São Paulo e correr atrás do sonho. Foi lá que, trabalhando como revisor de textos da Editora Abril, ele juntou recursos para se aprimorar no violão. Um dos maiores sucessos da música mundial de todos os tempos, “Autumn Leaves” mereceu uma versão de Chico César, já em 2005, quando virou “Outono Aqui”.
“Outono” (MPB, 2021) – Ed Nasque
A delicadeza permeia todo o repertório do álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho. “Pedro Pescador” tem a assinatura de Ed, e presta reverência a essa figura humilde e pacata do imaginário popular, com uma candura que nos aproxima da personagem. “O Rio e o Mar” abre-alas para a parceria com Antônio Martins e a participação luxuosa do Trio Amaranto. “Outono” dá vazão à seara instrumental com vigor a partir da poesia.
*Bônus
“Tempo da Estiagem” (samba, 2020) – Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira
O samba “Tempo da Estiagem” foi composto por Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira no início de 2020. É a estreia da dupla no gênero. Juntos, o mineiro Vidigal e o paulista Ferreira já haviam criado duas marchinhas de Carnaval: “Cuidado Com o Pescoço” e “Retiro do Vampiro”, em 2017 e 2018, respectivamente. Para interpretar a mais nova composição, eles convidaram a cantora Deh Mussulini e o violonista Lucas Telles, que também cuidou dos arranjos e da produção da faixa. “Tempo da Estiagem” é um samba lírico, na tradição da música popular brasileira afeita à dor de cotovelo, e que bebe nas influências tanto de Batatinha quanto Paulinho da Viola, com doce melancolia…
Foto: Leo Aversa/Divulgação.