Zé Renato lança o álbum ‘Quando a Noite Vem’ e rejeita rótulo de ‘elitista’

*por Raphael Vidigal

“Eu tocava a noite pura,
Não sabia mais morrer,
Pois um rio sem ruptura
Parecia percorrer-me…” Paul Valéry

Imagina João Gilberto cantando uma canção italiana que mistura mais dois idiomas. Zé Renato imaginou. “Arrivederci Roma”, título de filme lançado em 1958, com Mario Lanza e Marisa Allasio, ganhou uma regravação muito diferente do registro feito pelo cantor Nilton César que, em 1979, inclusive aportuguesou a letra para o Brasil. Composta por Renato Rascel com Pietro Garinei e Sandro Giovannini, a música já foi gravada por Dean Martin, Cliff Richard e Jack Jezzro.

Esta, aliás, é uma característica do repertório que compõe “Quando a Noite Vem”, álbum que Zé Renato acaba de lançar pela Biscoito Fino. O título pega emprestado um verso marcante de “Suave é a Noite”, versão de Nazareno de Brito para “Tender Is The Night”, clássico do cancioneiro norte-americano de Paul Francis Webster e Sammy Fain, imortalizado na voz macia e adocicada de Tony Bennett. Por aqui, recebeu a interpretação derramada de Moacyr Franco, em 1962.

A música serviu de guia para o trabalho, com produção de Patrícia Pillar. “A maioria das canções faz parte de momentos muito significativos da minha vida, principalmente da infância, são memórias afetivas”, explica Zé Renato que, fiel a seu estilo, procurou manter certa leveza nos arranjos. O romantismo também dá o tom, como se verifica em “I Can’t Stop Loving You”, sucesso de Ray Charles composto por Don Gibson, que abre-alas. “Tem a minha forma de olhar, sempre que canto músicas de outros autores é uma imersão, para tentar absorver e acrescentar alguma coisa ao que já foi feito”, sublinha o músico.

Internacional. Por exemplo no caso de “Nature Boy”, de Eden Ahbez, e que sob a pena de Caetano Veloso foi rebatizada de “Encantado”, ganhando vozes como as de Ney Matogrosso, Maria Bethânia e Cauby Peixoto, sem falar no registro original de Nat King Cole, craque do gênero. A solução diante de “gravações tão significativas” foi aclimata-la ao fado, com direito a uma guitarra portuguesa tocada por Bernardo Couto, aliada à voz e ao violão de Zé Renato. Na época, o cantor tinha uma viagem marcada para Portugal, que amadureceu a ideia.

Outro estandarte internacional presente é o bolero “Esta Tarde Vi Llover”, do mexicano Armando Manzanero, que Zé Renato conheceu na voz de Roberto Carlos, e, recentemente, recebeu interpretação da cantora Joyce. A faixa tem a participação de Dori Caymmi, criador do arranjo, ao violão. “Essa música está no meu radar afetivo desde sempre”, confessa Zé Renato. O desafio de cantar em inglês, italiano e espanhol o músico encarou com dedicação.

“Estudei pra prova”, brinca ele, que fez questão de manter um acento brasileiro. “Não me propus a cantar como um americano, espanhol ou italiano, claro que respeitando o idioma, mas sem abrir mão da nossa pronúncia particular”, diz. Curiosamente, o projeto nasceu quando Patrícia Pillar assistiu Zé Renato cantar “Por Causa de Você”, de Dolores Duran e Tom Jobim, no Prêmio da Música Brasileira. Dolores, que, em 1955, gravou pela Copacabana um LP em que cantava em inglês, espanhol, italiano e até esperanto.

Brasileiro. Na pendenga que opôs Caetano Veloso a Hermeto Pascoal sobre a música mais importante do século XX, e que aparece no documentário “Coração Vagabundo”, de 2008, Zé Renato sugere não tomar partido, embora não seja exatamente assim. Caetano saiu em defesa da música norte-americana, enquanto Hermeto objetou que seria a brasileira.

“Não sabia dessa polêmica e acho que ambas são muito distintas. A riqueza de cada uma é incontestável. Acho que a música brasileira é a última reserva de inspiração que a gente tem, e não vejo tanto isso na norte-americana. Claro que o que foi produzido até meados dos anos 1970, 1980, é extraordinário, mas a música brasileira nunca parou de se renovar, com uma capacidade criativa e emocional incrível”, opina Zé Renato, que, ao relembrar os clássicos de cada um, cita os irmãos Gershwin, Cole Porter, Pixinguinha, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Noel Rosa e se estende até Caetano, Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil. “São duas culturas importantes e duas forças muito claras da música mundial”.

Nesse espírito globalizado do álbum, o Brasil, claro, não poderia ficar de fora. “Bom Dia, Tristeza”, única parceria de Vinicius de Moraes e Adoniran Barbosa, serviu de oportunidade para Zé Renato deixar baixar sobre ele o espírito rebelde e inovador de Jards Macalé, de quem se aproximou a partir do projeto “Dobrando a Carioca”, que ainda conta com Guinga e Moacyr Luz. “O Macalé tem um jeito próprio de cantar e tocar, e procurei levar para o arranjo essa forma muito livre e solta dele. A participação do Pedro Sá na guitarra ajudou a levar esse clima meio flutuante da música”, observa.

Sofisticação. A mais inegável das influências segue sendo a da bossa nova, visível no arranjo de Jacques Morelenbaum para “Suave é a Noite”. “Para quem é apaixonado por melodias e harmonias como eu, a bossa nova é uma grande referência, em especial Tom Jobim e João Gilberto”, destaca Zé Renato. A despeito de toda essa sofisticação, o músico rejeita a etiqueta de “elitista” que muitas vezes tentam pregar à sua obra.

“Faço música popular, se ela é vista como ‘elitista’ acho que é uma avaliação bastante equivocada. Se for ver por esse ângulo, Noel Rosa e Ary Barroso já eram sofisticados e nunca deixaram de ser populares. A sofisticação melódica, harmônica e poética da música brasileira vem de muito tempo. Chamar de ‘elitista’ é subestimar muito a capacidade do povo de absorver a música que eu e tantos outros que estão por aí produzem”, avalia.

Para auxiliá-lo, Zé Renato recorda uma frase musical de Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. E ainda se vale da experiência com o Boca Livre, grupo com o qual surgiu em 1978. “O primeiro disco do Boca Livre foi o de maior sucesso do grupo e foi independente, justamente porque nenhuma gravadora queria. Já tenho experiência nessa história de saber que não se pode medir o gosto popular desse jeito. As pessoas precisam ter acesso à cultura de forma ampla, o Brasil é um país muito grande para ter a sua diversidade reduzida a essas tentativas de nos enquadrar pelos modelos estabelecidos pela indústria fonográfica, e que buscam moldar o gosto popular”, vaticina.

Livre. Em fevereiro, quando todos os holofotes estavam voltados para a indicação da cantora Anitta ao Grammy, o Boca Livre abocanhou o prêmio de melhor álbum pop-latino com “Pasieros”, gravado com o músico panamenho Ruben Bladés. “Foi uma premiação importantíssima, o Grammy é o maior prêmio da indústria fonográfica, e, na minha avaliação, foi um reconhecimento ao vocal brasileiro, que tem uma tradição tão importante para a nossa música. Vem a premiar, também, o trabalho de mais de quarenta anos realizado pelo Boca Livre”.

Foi, também, uma espécie de consagração póstuma. Em 2021, o grupo chegou ao fim após divergências políticas, notadamente entre Maurício Maestro, propagador de notícias falsas contra as vacinas e defensor do ex-presidente Jair Bolsonaro, e os demais. Mas Zé Renato prefere não comentar o assunto, que parece ultrapassado. Em 2022, Lula foi eleito presidente da República pela terceira vez, um feito histórico no Brasil, com mais de 60 milhões de votos.

Foto: Miro/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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