29 sambas para salvar o Brasil

*por Raphael Vidigal

“A família Pitangueira
Reúne um conselho em casa,
Mas tem pena de vender.
Lúcio dá um murro na mesa:
‘Meu Deus praquê tanto avô!’
Lá fora passava um rancho
Cantando o samba da moda.” Murilo Mendes

O samba se fez em terreiro, vindo da África, batizado a partir da palavra que designava uma tradicional dança de Angola, e que logo migrou para a Bahia e depois chegou, também através dos escravos e seus descendentes, ao Rio de Janeiro, onde transformou-se em ritmo, estilo e até modo de vida, responsável por caracterizar seus músicos pejorativamente de “malandros”. Martinho da Vila aponta a importância de Noel Rosa nesse processo, “branco sem preconceitos que subiu o morro e trouxe o samba para o centro de todas as classes sociais”.

Antes acostumadas com os estrangeirismos europeus da valsa, da polca e das canções italianas, essas classes passaram a cantar um gênero que se consagraria como a autêntica raiz cultural do Brasil, através de um caldo fervilhante de intensas misturas, a tal miscigenação que os modernistas chamariam de “antropofagia”, e que influenciaria a Tropicália. Nisto, o samba se mistificou, criou raízes e deu novos frutos, por obra de sua amplidão. A salvação para o Brasil não poderia vir de outro lugar que do samba e da arte de seu povo.

“Onde Está a Honestidade?” (samba, 1933) – Noel Rosa
Logo na primeira metade da década de 1930, a música brasileira versava sobre política. E o título da canção era justamente “Onde Está a Honestidade?”, um samba de Noel Rosa lançado pelo próprio. Séculos depois, e a música continua atual, o que prova não apenas o poder de captura e síntese de Noel Rosa, como a percepção de que a crônica dos costumes nacionais não se alterou de maneira dramática dali pra cá. Ou talvez seja esse o drama. A letra não poderia ser mais precisa: “Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter nenhuma herança nem parente/ Só anda de automóvel na cidade/ E o povo já pergunta com maldade:/ ‘Onde está a honestidade?…’”, questiona este narrador.

“O Samba da Minha Terra” (samba, 1940) – Dorival Caymmi
“O Samba da Minha Terra” é a declaração de amor de Dorival Caymmi às suas raízes musicais e terrenas. Confundem-se Bahia e samba na trajetória desse fruto da boa terra que chegou ainda moço ao Rio de Janeiro, e, no mesmo ano da composição, em 1940, jurou novo amor eterno: à cantora Stela Maris, sua companheira durante toda a vida. O verso em forma de ditado popularizou-se tal qual algo que se prega à nossa personalidade e que se colhe no berço, nos primeiros passos dados, em terra firme ou alto mar: “Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça/ Ou doente do pé!”. A música foi lançada pelo Bando da Lua como a última gravação do grupo em suas terras brasileiras.

“Leva Meu Samba” (samba, 1941) – Ataulfo Alves
Depois de diversos êxitos como compositor, somente em 1941 o mineiro Ataulfo Alves estreou cantando as suas músicas. A primeira delas, “Leva Meu Samba”, contou com o acompanhamento do ainda anônimo Jacob Bittencourt, posteriormente rebatizado de Jacob do Bandolim, e já prenunciava o bom gosto de Ataulfo para escolher quem estivesse ao seu redor. Mais adiante, ele formaria um casamento de incrível sucesso com as suas pastoras, que levariam seu samba e seu recado para todos os amores, desfeitos e iniciados. A música tornou-se um grande sucesso e ganhou regravações de Noite Ilustrada, Jorge Aragão, Sandra de Sá e diversos outros bambas Brasil afora, do norte até o sul.

“Brasil Pandeiro” (samba, 1941) – Assis Valente
Acarajé, cuscuz e abará, todos esses pratos preparados com o molho da baiana, fazem com que o Tio Sam do samba de Assis Valente não resista ao sabor da comida e do samba brasileiro. Composto em 1941, “Brasil Pandeiro” dedica seus versos a cantar as delícias do país, como seu samba, seu terreiro, sua gente bronzeada e sua rica culinária, que desperta até o interesse dos distantes norte-americanos. A música havia sido feita para Carmen Miranda, espécie de amor platônico de Assis Valente, que acabou recusando, supostamente por possuir versos que exaltavam a ela própria. Por conta disso, foi lançada pelos Anjos do Inferno, e, mais tarde, renovada na interpretação dos Novos Baianos, em 1972.

“É Com Esse Que Eu Vou” (samba, 1948) – Pedro Caetano
Pedro Caetano nunca foi compositor, pelo menos era isso o que a formalidade lhe falava. Ele manteve seu lar com o dinheiro dos calçados e vestidos que vendeu por toda a vida, só aparecendo de corpo e alma para gravar um disco aos 64 anos. Mas a essa altura suas músicas já eram cantadas por muitos outros, sempre com popularidade. “É Com Esse Que Eu Vou” conclama o espírito carnavalesco a pisar na avenida sem distinções de raça ou classe. Uma festa que começou no caderninho de Pedro Caetano durante uma viagem de trem de Vitória para Belo Horizonte, passou pelas vozes dos Quatro Ases e um Coringa e chegou até Elis Regina, regravando-a 25 anos depois do lançamento.

“Não Vou Pra Brasília” (samba, 1957) – Billy Blanco
Em 1957, com Juscelino Kubitschek na Presidência do Brasil, incentivava-se a migração para Brasília, arquitetada e construída para ser a nova capital federal do país, símbolo de modernidade e arejamento. Porém, uma medida antiga e retrógada tomada pelo governo atingiu diretamente a Billy Blanco. Insatisfeito com o processo que se instaurava, Billy compôs a crítica “Não Vou Pra Brasília”, gravada pelo conjunto Os Cariocas, em que comparava a tentativa de forçar a migração ao que fora feito, de forma violenta e covarde, com os índios que aqui estavam antes da chegada dos portugueses. A canção, no entanto, acabou censurada por contrariar, justamente, a propaganda oficial do Estado brasileiro.

“Viva Meu Samba” (samba, 1958) – Billy Blanco
“Viva Meu Samba”, lançado em 1958 por Silvio Caldas, transformou-se no que se pode chamar de hino do gênero. Com acompanhamento do maestro Radamés Gnattali, o próprio autor, Billy Blanco, regravaria a música posteriormente. Entre as diversas regravações destacam-se também as de Jair Rodrigues, Dolores Duran e Roberto Ribeiro. A música trata em seus versos de exaltar o ritmo através dos seus instrumentos, com sua ode a violões, tamborins, pandeiros e reco-recos que foram capazes, através do tempo, de eleger o samba como a mais genuína forma de expressão do povo brasileiro, assim como suas origens e esperanças: “Viva meu samba verdadeiro/ Porque tem teleco-teco…”.

“Volta Por Cima” (samba, 1962) – Paulo Vanzolini
“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu Paulo Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique sobre o que fazer com a música que este havia ganhado, e que, por brigas com a gravadora, não poderia gravar. Foi então que “Volta Por Cima” encontrou Noite Ilustrada, e, por três semanas consecutivas, angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962. Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”. Para Vanzolini, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso “reconhece a queda”.

“O Sol Nascerá [A Sorrir]” (samba, 1964) – Cartola e Elton Medeiros
Localizada na rua da Carioca, subúrbio do Rio, a famosa casa de espetáculos conhecida como Zicartola, comandada por Cartola e sua esposa, Dona Zica, logo despertou o interesse de Nara Leão, que, além de bossa nova, gravou em seu disco de estreia três sambas, um deles intitulado “O Sol Nascerá” , também conhecido como “A Sorrir”, de Cartola e Elton Medeiros. Incluída no Show Opinião, a música tornou-se um dos maiores sucessos da carreira de Cartola, e recebeu regravações de Isaura Garcia, Elis Regina, Jair Rodrigues, dentre tantos outros. O refrão solar traduzia bem o momento de seu autor, sorrindo após a tempestade e disposto a continuar a sua trajetória a despeito das adversidades.

“O Morro Não Tem Vez” (samba, 1964) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
“O Morro Não Tem Vez”, samba de andamento diferenciado, foi lançado no álbum “O Samba Como Ele É”, mas só alcançou reconhecimento quando Jair Rodrigues o cantou em dueto com Elis Regina no LP “Dois Na Bossa”, de 1965, acompanhados pelo Jongo Trio num pot-pourri que reunia ainda “Feio Não É Bonito” (de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri), “Samba do Carioca” (de Lyra e Vinicius de Moraes), “Este Mundo É Meu” (de Sérgio Ricardo e Ruy Guerra), “A Felicidade” (de Tom Jobim e Vinicius) e muitas outras canções de sucesso. Composta pela dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a composição chegava ao Brasil junto com o nefasto regime militar, que perduraria vinte anos, até 1985.

“Opinião” (samba, 1964) – Zé Kéti
A música composta por Zé Kéti sobre o processo de remoção de favelas que era executado pelo governo da Guanabara seria o mote perfeito para que, no final de 1964, os artistas pudessem dar o seu primeiro grito de liberdade silenciada. E foi também no ambiente do Zicartola, onde, segundo Zé Kéti, os compositores podiam cantar à vontade, que surgiu a ideia do musical homônimo. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do povo Zé Kéti, que interpretava, mais uma vez, o malandro do morro carioca.

“Juízo Final” (samba, 1967) – Paulo Vanzolini
“Eu sou puritano mesmo, sempre fui. Eu tenho 60 músicas e nunca usei a palavra malandro.” Esse rigor estilístico e conceitual de Paulo Vanzolini nunca o impediu de tratar com áspero senso de humor temas de natureza recalcada. A religiosidade foi uma das escolhidas como alvo de seu deboche bem construído. “Juízo Final” é uma satírica composição que reproduz até os toques da harpa tocada pelo recém-aceito anjinho de sua pessoa, que olha para baixo e ri-se da desgraça alheia: “A ingrata que hoje trabalha de salsicha/ Espetadinha no garfo/ satanás fritando a bicha…/ Ô Demônio capricha!”. De uma incorreção saborosa e bem trabalhada por Vanzolini, a música passa despercebida até hoje em dia…

“Samba do Crioulo Doido” (samba, 1968) – Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta
Sérgio Porto, reconhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, era homem de inúmeros talentos. Radialista, cronista e compositor, conheceu o sucesso com esta última atividade, já no final da vida. Em 1968, poucos meses antes de falecer, vítima de um enfarto aos 45 anos, Stanislaw criou o “Samba do Crioulo Doido”, que, além de expressão popular, transformou-se em canção de sucesso e show protagonizado por ele e as meninas do “Quarteto em Cy”, à ocasião Cymíramis, Cyntia, Cyregina, sendo as duas últimas codinomes de Sônia Ferreira e Regina Werneck, respectivamente, e a remanescente Cyva. A irreverente introdução dessa sátira é recitada pelo próprio autor, Sérgio Porto.

“Despejo na Favela” (samba, 1969) – Adoniran Barbosa
Não é por falta de mérito que Adoniran Barbosa é tido e havido como um cronista musical. Além de capturar o sotaque e a prosódia específica da população paulista descendente da colônia italiana que aportou no Brasil, e da qual ele próprio fazia parte, o compositor se sensibilizava com as questões rotineiras e diárias vividas pela população, das trágicas às cômicas, sempre com um toque de incentivo. “Despejo na Favela”, de 1969, foi lançada pelo sambista Nerino Silva no compacto do último Festival da Música Popular Brasileira produzido pela TV Record. No samba, fica clara a maneira desonesta e intolerante com que os políticos brasileiros comandam as remoções de nossos moradores mais pobres.

“Pra Quê Dinheiro?” (samba, 1969) – Martinho da Vila
Martinho da Vila provava, em 1969, que o assunto dinheiro não é unânime. Desmentindo a tese de que com dinheiro a vida é mais fácil e as conquistas vêm a reboque, o sambista relata o caso da mulher que se apaixonou pelos encantos de um bom tocador de viola e desprezou aquele que tinha dinheiro. Afinal de contas “em casa de batuqueiro/ só quem fala alto é viola”, deixa claro em certa altura da letra. A música foi regravada pela dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó e pelo cantor Jair Rodrigues, comprovando o poder de identificação com várias camadas da nossa sociedade. Ou seja, a dimensão econômica da existência não necessariamente amplia ou anula as demais, como parecem pensar alguns.

“Aqui É o País do Futebol” (samba, 1970) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Convidados pelos diretores Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite para compor a trilha sonora do filme “Tostão, a Fera de Ouro”, Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram canções que ultrapassaram aquele período específico. “Aqui É o País do Futebol”, samba moderníssimo em sua estrutura e com letra que exalta o poder de atenção do esporte sobre os brasileiros, embalou não só a Seleção Brasileira em 1970, quando ela conquistou o Tricampeonato Mundial no México, com uma equipe considera das melhores de todos os tempos, como seguiu emocionando e contagiando plateias mesmo após o encerramento da competição. Lançada por Milton, a música foi regravada por Elis Regina e Simonal.

“Apesar de Você” (samba, 1970) – Chico Buarque
Exilado na Itália, Chico Buarque retornou ao Brasil em 1970, após mais de um ano. Incentivado pelo dono da gravadora, André Midani, que garantia a melhora da situação, Chico se decepcionou ao constatar o verdadeiro cenário. Para expressar sua indignação e esperança compôs o samba “Apesar de Você”, no qual mandava recados diretos: “Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/Nesse meu penar”. Os censores não captaram a mensagem, e caíram na ladainha de uma “briga de amantes”. Quando a canção estourou nas rádios, a população, bem mais esperta e atenta, logo a tomou nos braços e entoou em toda parte. Os militares tardiamente descobriram do que se tratava e então proibiram a execução da música e destruíram os discos, mas se esqueceram da matriz, o que permitiu a reedição original ao término do regime autoritário.

“A Tonga da Mironga do Kabuletê” (samba, 1971) – Vinicius de Moraes e Toquinho
Monsueto foi convidado, em 1971, por Vinicius de Moraes e Toquinho, autores da música, para uma esdrúxula participação em “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: emitir sons ininteligíveis. Sabendo ser um convite de poeta para poeta, é claro que Monsueto aceitou. Hábil inventor de expressões carregadas de influência africana, mas, sobretudo, de humor e ironia, ele estava em casa quando se intrometia nos versos de “A Tonga da Mironga do Kabuletê”, como o haviam pedido. E é para lá, nesse lugar estranho e desconhecido, que Vinicius de Moraes e Toquinho pretendiam mandar com inteligência aqueles que atentavam contra tal princípio neste momento triste da política brasileira, abafada sobre o regime ditatorial que permaneceu de 1964 até 1985. Monsueto, ao contrário, era um homem livre, e legou, com alegria, este princípio e este ritmo.

“Jorge Maravilha” (samba, 1973) – Chico Buarque
Perseguido pela censura Chico Buarque recorreu, em 1973, a um de seus truques. Ao criar o pseudônimo Julinho da Adelaide, ele conseguiu incluir canções de sua autoria no álbum “Sinal Fechado”, idealizado para ser composto apenas com músicas alheias. O show “O Banquete dos Mendigos” foi uma estratégia do irreverente Jards Macalé para “arrecadar doações” para si e homenagear os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma farpa no âmago da ditadura, em total dissonância com os propósitos do documento da ONU. Transformada depois em álbum, Chico registrou na histórica apresentação o samba “Jorge Maravilha”, numa das mais irônicas cutucadas no regime, que atingia diretamente o seu ditador. Os versos “Você não gosta de mim, mas a sua filha gosta”, eram o melhor do desprezo que Chico poderia oferecer a Ernesto Geisel, cuja filha era fã do compositor de olhos claros.

“Geraldinos e Arquibaldos” (samba, 1975) – Gonzaguinha
No ano de 1975, Gonzaguinha se esquiva das garras da censura imposta no Brasil em razão da ditadura militar, com um samba irônico e divertido, cuja sinuosidade da letra é acompanhada de perto pelo ritmo. “Geraldinos e Arquibaldos” traz ainda uma homenagem às pessoas humildes que frequentam os estádios nos lugares mais simples, a “geral” e a arquibancada, além de lançar mão de expressões típicas do esporte mais popular do país, como “cama de gato”, e outros ditos populares, como “angu que tem caroço”. Lançada num dos primeiros álbuns de Gonzaguinha, “Plano de Voo”, já mostrava o poder de crítica e a acidez construtiva dos versos de Gonzaguinha, além da inventividade formal.

“As Forças da Natureza” (samba, 1977) – João Nogueira e Paulo César Pinheiro
Em 1977, João Nogueira e Paulo César Pinheiro compuseram, especialmente para Clara Nunes, a música “As Forças da Natureza”, que deu nome ao seu disco daquele ano. A mineira guerreira, lutadora ativa das lutas sociais, sempre a favor do meio ambiente e das práticas religiosas enraizadas na origem do Brasil, não se fez de rogada e entoou o cântico com toda a magia que dele emana. Entre os versos mais impressionantes destaca-se a elementar profecia: “Vai resplandecer/ Uma chuva de prata do céu vai descer/ O esplendor da mata vai renascer/ E o ar de novo vai ser natural/ Vai florir…”. Regravada por Alcione.

“Querelas do Brasil” (samba, 1978) – Aldir Blanc e Maurício Tapajós
Apesar de ter morrido precocemente, com apenas 51 anos, Maurício Tapajós assinou importantes canções da música brasileira, dentre elas “Mudando de Conversa”, com Hermínio Bello de Carvalho, “Pesadelo” e “Tô Voltando”, ambas com Paulo César Pinheiro, e “Carro de Boi”, com Cacaso, gravada por Milton Nascimento. Não menos relevante é a parceria com Aldir Blanc em “Querelas do Brasil”, de 1978. Lançada por Elis Regina, no álbum “Transversal do Tempo”, a canção parte do icônico samba-exaltação de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, para subverter o sentido. “Querelas do Brasil” é uma queixa diante da americanização cultural do país. Para combater esse processo, os compositores se valem do ritmo e da palavra, e resgatam inúmeras expressões tipicamente brasileiras, algumas de origem indígena, como “pererê, camará, gororô, olererê”.

“Rio Antigo” (samba, 1979) – Chico Anysio e Nonato Buzar
Craque dos pés à cabeça, desde as sapatilhas do personagem Haroldo, o heterossexual convertido, até a touca do empertigado ator Antônio Roberto, Chico Anysio sabia como manusear palavras, imagens, lápis e maquiagem. Nostalgia, esperança e reverência uniram-se umas às outras para emoldurar a música “Rio Antigo”, composta no ano de 1979, em parceria com Nonato Buzar, um dos nomes do movimento conhecido como “pilantragem”, que era capitaneado por Carlos Imperial e Wilson Simonal. A música estourou na voz de Alcione e foi regravada, em um divertido dueto, por Chico Anysio e Mussum. Até hoje, ela também é conhecida pelo pseudônimo de “Como Nos Velhos Tempos”.

“E Vamos À Luta” (samba, 1980) – Gonzaguinha
Durante a sua trajetória, Gonzaguinha conviveu com a pobreza na favela, problemas de saúde, como as duas tuberculoses que teve, e a falta de liberdade imposta pela ditadura. Apesar disso, deu um jeito de driblar as armadilhas para conquistar o que achava que tinha direito. “E Vamos à Luta” é talvez o samba mais animado, emblemático e contagiante de sua obra. A música traz um recado otimista de persistência e coragem, direcionado aos brasileiros que batalham seu lugar ao sol diariamente, com espaço para uma fezinha especial na juventude. Através dos versos esfuziantes da canção, Gonzaguinha cultiva as delícias da união e do sonho. Gravada por ele em 1980, a música foi apresentada depois em duetos descontraídos com Alcione e Roberto Ribeiro.

“Brasil Mestiço, Santuário da Fé” (samba, 1980) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
A mineira Clara Nunes, natural de Caetanópolis, no interior do estado, foi, sem dúvida alguma, a principal voz do sincretismo religioso no Brasil. Ao aderir à umbanda e ao candomblé, cravou sua marca no nosso samba de tantas intérpretes e interpretações. Além dos adereços, das danças, e do cabelo, Clara se portava como uma autêntica filha da influência africana no país. Interpretava as músicas com esse sentimento. O samba “Brasil Mestiço, Santuário da Fé”, composição feita especialmente para ela pelo marido Paulo César Pinheiro e o parceiro Mauro Duarte, em 1980, comprova essa tese. O batuque da Cabala, da Umbanda e da Luanda se integram no canto de Clara.

“Sorriso Negro” (samba, 1981) – Jorge Portela e Adilson Barbado
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça. “Sorriso Negro” foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para ser gravado no álbum da cantora de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, confirma entre seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”. A música foi regravada pela trupe do “Fundo de Quintal” e por Mart’nália.

“Eu Não Falo Gringo” (samba, 1986) – João Nogueira e Nei Lopes
João Nogueira foi o típico sambista carioca ortodoxo e praticamente, como ele deixava claro na letra de “Eu Não Falo Gringo”, parceria com o bamba Nei Lopes, lançada em 1986: “Eu não falo gringo/ Eu só falo brasileiro/ Meu pagode foi criado/ Lá no Rio de Janeiro/ (…) Eu aposto um ‘eu te gosto’/ Contra dez ‘I love you’/ Bem melhor que hot dog/ É rabada com angu”, cantava, renovando o discurso de Noel Rosa em “Não Tem Tradução”, música de 1933 que ele também regravaria, no álbum dedicado aos ídolos Wilson Baptista, Geraldo Pereira e, claro, Noel. João não admitia estrangeirismos em seu samba genuíno.

“Coração do Brasil” (samba, 1998) – Jards Macalé
Jards Macalé, um dos mais irreverentes e criativos compositores nacionais, com trajetória incomum dentro deste cenário, apelidado até, em certo momento e a contragosto, de “maldito”, prestou uma homenagem à identidade brasileira a seu modo, cinco anos antes de encampar o mote “Amor, Ordem & Progresso” para a bandeira, em 1998. “Coração do Brasil” é um samba, lançado no álbum “O q faço é música”, com um único verso de única palavra repetido exaustivamente: “Coração…/ Ah coração!/ Coração…/ Ah coração…”. A música recebe o acompanhamento da Velha Guarda da Portela, de Monarco e Cristina Buarque nos coros e vocais, além de Ovídio e Gordinho na percussão, e é dedicada ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos ícones do Cinema Novo. Condensa em seu bojo um misto de lamento e exaltação.

“Tempo da Estiagem” (samba, 2020) – Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira
O samba “Tempo da Estiagem” foi composto por Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira no início de 2020. É a estreia da dupla no gênero. Juntos, o mineiro Vidigal e o paulista Ferreira já haviam criado duas marchinhas: “Cuidado com o Pescoço” e “Retiro do Vampiro”, em 2017 e 2018, respectivamente. Para interpretar a composição, eles convidaram a cantora Deh Mussulini e o violonista Lucas Telles, que também cuidou dos arranjos e da produção da faixa. “Tempo da Estiagem” é um samba lírico, na tradição da música popular brasileira afeita à dor de cotovelo, e que bebe nas influências de Batatinha e Paulinho da Viola, com sua doce melancolia.

Imagem: Caricatura de Lan/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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