Novo documentário sobre Ney Matogrosso, ‘À Flor da Pele’ estreia na TV

*por Raphael Vidigal

“talvez seja apenas um garoto, ou um camaleão de todas as idades, ou uma mulherzinha enfeitiçada.” Nietzsche

O local era o mesmo, mas vinte anos separavam uma experiência da outra. As pessoas também haviam sido modificadas pela mesma sensação. “A minha lembrança mais antiga ligada ao Ney é a minha mãe e o meu pai chegando em casa uma noite, vindo do Canecão (famosa casa de shows do Rio de Janeiro), maravilhados com o show ‘Pescador de Pérolas’, em 1987”, recorda Felipe Nepomuceno. Aquele espetáculo já era histórico: pela primeira vez Ney Matogrosso – que despontou no grupo Secos e Molhados por trás de uma carregada maquiagem em preto e branco de inspiração japonesa – entrava no palco de cara limpa. “Durante muito tempo, volta e meia eles lembravam desse show e da emoção que tinham sentido naquela noite”, prossegue Nepomuceno.

“Muitos anos depois, no mesmo Canecão, fui pela primeira vez ver um show do Ney, ‘Inclassificáveis’, de 2007, e de alguma forma senti outra vez a emoção que eles tinham sentido e que tinha ficado guardada em mim”. Como um animal selvagem que se contém pelo breve período que dura o efeito do tranquilizante, Ney logo voltaria às fantasias exuberantes que correspondiam à sua natureza “primária, pé no chão, gosto de chifres e ossos em cima de mim”, como ele admite no documentário “À Flor da Pele”, dirigido por Nepomuceno, que estreia hoje no canal Curta!. O filme nasceu graças a um convite da emissora, “acho que por conta da minha proximidade e colaboração com o Ney”, diz o diretor, que começou a trabalhar com o cantor a partir de “Beijo Bandido Ao Vivo” (2010).

Pele. Mas a aproximação com Ney é sempre oblíqua. O intérprete é conhecido pelo modo reservado com que protege sua intimidade, a despeito de tudo o que expõe diante da plateia, sob canhões de luz e refletores potentes que ajudam a articular as intenções e os gestos lânguidos do artista, da malícia à provocação explícita. Em uma das várias imagens de arquivo que o longa recupera, Ney aparece no palco tocando a própria genitália, sem pudor. Em outro momento, surge num figurino capaz de derrubar o queixo dos vanguardistas mais avançados, quase com um nu frontal. “A obra do Ney está em plena atividade, no seu significado mais profundo, presente na palavra ‘liberdade’. É um canto poderoso contra a boçalidade e qualquer tipo de censura”, avalia Nepomuceno.

Prestes a completar 80 anos em 2021, Ney pensava, no início da carreira, em se aposentar quando chegasse aos 50, para fugir a uma hipotética decadência pública. Porém, foi com essa idade que ele novamente se metamorfoseou, como autêntico camaleão que é, e, no parecer de Nepomuceno, realizou uma de suas “parcerias mais emblemáticas”, quando se uniu ao violonista prodígio Raphael Rabello, o que deu origem a um disco e inúmeras apresentações pelo Brasil. O título do documentário remete a esse encontro, e não somente. “Gosto muito desse nome por falar de uma coisa próxima, viva, botânica e humana, que pode despertar diversas sensações e interpretações, como a obra do Ney”, explica o entrevistado. O choque que o mato-grossense de Bela Vista se habituou a provocar se repete na abertura do filme, quando prece e violência se embicam.

Choro. “Quando ouvi pela primeira vez essa gravação, tive a certeza de que queria abrir o filme com ela”. Enquanto imagens de repressão da ditadura militar brasileira invadem a tela, Ney entoa “Ave Maria” (de Vicente Paiva e Jayme Redondo, composta em 1950), em uma gravação obscura feita para o álbum “Os Melhores Cânticos de Fé”, de 2007. “Além de ser uma música linda, passa proteção, e senti que precisava dela para seguir em frente. Tem gente que reza antes de comer ou antes de entrar em campo. Essa música foi a minha forma de rezar antes de entrar no filme”, conta o diretor. A montagem da sequência foi concebida com Paulo Henrique Fontenelle. “Espero que desperte em cada espectador suas próprias emoções e pensamentos”, reflete Nepomuceno.

A narrativa documental segue esse princípio. O cineasta lança mão de videoclipes e depoimentos antigos de gente como Chico Buarque, Milton Nascimento e Caetano Veloso – claramente incomodado quando Ney diz que “foi além” na revolução sexual que o baiano tinha “ameaçado” colocar em prática. “Sempre uso o critério da emoção. Gosto de filmes que me fazem chorar. Acho que os depoimentos e as músicas que estão no filme cristalizam a essência do que o Ney representa para mim”, afirma Nepomuceno. O relacionamento com Cazuza dispensa o lenga-lenga das declarações corriqueiras, e é sublinhado com “O Mundo É Um Moinho”, clássico de Cartola, em opção que prima pela delicadeza: “Mal começaste a conhecer a vida/ Já anuncias a hora de partida…”.

Canto. Em suma, o documentário prefere mostrar a explicar. A escolha se revela acertada. “Sempre me guio pelo faro, não sou nada intelectual”, se autoanalisa o protagonista, em entrevista para Leda Nagle. Uma juventude transviada se banha no chafariz do Parque Lage em saudação a Ney, que canta “Fala”, de João Ricardo e Luhli, um dos maiores sucessos do Secos e Molhados, durante o encerramento da exposição Queermuseu, censurada em Porto Alegre, no ano de 2018, quando se matou Marielle, Lula foi preso e Jair Bolsonaro acabou eleito. “Entendo a narrativa desse filme como sendo cíclica e não cronológica. O filme começa com uma gravação de 2007 e imagens que poderiam ser hoje. E termina com uma música de 1973 e imagens que podem ser amanhã”, finaliza o diretor.

Fotos: Acervo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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