*por Raphael Vidigal
“A luz vem também do olho;
No globo sobre a minha cabeça
Vinte pés de diâmetro, trinta pés de diâmetro
Cristalina, a superfície fulgurante –
São muitos reflexos
Que se podem ver, mutantes e móveis,
Com as cabeças ora pra baixo, ora pra cima” Ezra Pound
De uns tempos para cá, Gal Costa retomou o costume de lançar discos com regularidade. Mais do que isso: a partir de “Recanto” (2011), inteiramente produzido por Caetano Veloso, ela se reencontrou com o futuro. A antena que a tornou musa da Tropicália nos anos 1970 aparece enviesada em “A Pele do Futuro”, sua mais recente novidade. O álbum apresenta alguns truques, como, por exemplo, resgatar o ritmo da época em que as discotecas alcançaram o status de febre no país.
Mas, para além desse invólucro, o recado que a intérprete dá é para o presente, em um disco que soa atual, fresco, sem, para isso, lançar mão de recursos que ela mesma explorou em trabalhos recentes. O peso que antes era depositado numa linguagem conceitual e eletrônica, agora, aparece no discurso. Com a voz de cristal de Gal, que continua fatal.
“No Tabuleiro da Baiana” (samba-batuque, 1936) – Ary Barroso
Grande Otelo cantou pela primeira vez o samba-batuque “No tabuleiro da baiana” em 1937, em um espetáculo da revista “Maravilhosa”, ao lado da cantora Déo Maia. Chamado para substituir Luís Barbosa, que estava enfermo com uma tuberculose, Otelo procurou Ary Barroso na Rádio Cruzeiro do Sul para ensaiar. Ao final do número, Ary vaticinou: “Você nunca vai cantar “No tabuleiro da baiana”. Você é muito desafinado!”. Otelo apresentou a música no Teatro Carlos Gomes e foi um grande sucesso. Segundo ele, “continuou desafinado” e cantando a música. Décadas depois, em 1981, no especial da TV Globo “Maria da Graça Costa Penna Burgos” cantou novamente o sucesso ao lado de Gal Costa. O resultado não poderia ser outro, muitos risos e boa música!
“Espinha de Bacalhau” (choro, 1936) – Severino Araújo
Nascido em Limoeiro, no interior de Pernambuco, Severino Araújo mudou-se para João Pessoa, na Paraíba, ainda na década de 30. Filho de um mestre de banda, ele logo adotou a clarineta como instrumento predileto. Em 1936, o futuro maestro da Orquestra Tabajara, que dirigiu por décadas, compôs o maior de todos os sucessos: “Espinha de Bacalhau”, um choro ligeiro como os melhores do gênero. Em 1981, a composição ganhou letra de Fausto Nilo e interpretação de Ney Matogrosso e Gal Costa. Também foi regravada por Dominguinhos e Altamiro Carrilho. Morando no Rio de Janeiro a partir dos anos 40, Severino comandou sua Orquestra em discos antológicos ao lado de Jamelão, em homenagem a Lupicínio Rodrigues. Outro admirador da obra de Severino é o irreverente músico Jards Macalé, que compôs “Choro de Archanjo”.
“Aquarela do Brasil” (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso
Lançada por Araci Cortes no teatro de revista, em junho de 1939, a música só se destacou um mês depois, quando voltou a ser apresentada, desta vez pelo barítono Cândido Botelho, no espetáculo “Joujoux e Balangandãs”. A primeira gravação em disco foi feita pelo cantor Francisco Alves, acompanhado por uma orquestra que executava o arranjo de Radamés Gnattali. Daí por diante, nomes como Sílvio Caldas, Carmen Miranda, Tom Jobim, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, Bing Crosby e Frank Sinatra a regravaram. Durante a ditadura militar, Elis Regina interpretou a versão mais sombria da canção, acompanhada por um coral que reproduzia os cantos dos povos indígenas do Brasil.
“Falsa Baiana” (samba, 1944) – Geraldo Pereira
Em 1944 Geraldo Pereira escreveu um samba que depois seria gravado por Gal Costa, Roberto Ribeiro, João Gilberto e muitos outros. Lançada por Ciro Monteiro após a recusa de Roberto Paiva a canção se tornou sucesso já na década de 1940. Com versos característicos da prosa sincopada de seu autor, a música segue o ritmo do corpo da protagonista, de seus quadris, chamados pelo apelido consagrado em terras tupiniquins, famosas “cadeiras”, e não se faz de rogado em aludir ao charme e provocação da baiana verdadeira, aquela que deixa “a moçada com água na boca”. Uma ode ao corpo feminino e seu poder de sedução condensado por metáforas e expressões populares.
“Só Louco” (samba-canção, 1956) – Dorival Caymmi
“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis ligadas ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos esperamos. O samba-canção lançado pelo próprio Dorival Caymmi em 1956 ganhou regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. “Só louco, amou, como eu amei, só louco, quis o bem que eu quis. Ah insensato coração, porque me fizeste sofrer, se de amor para entender, é preciso amar, por que…”.
“Noites Cariocas” (choro, 1957) – Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho
“Noites Cariocas” foi gravado por Jacob do Bandolim em maio de 1957, com o regional de Canhoto, que o acompanhava na época. Apesar da excelência com que desenvolvia suas composições, o bandolinista ainda não vivia sua época de ouro, e acabou criando um certo rancor por Waldir Azevedo, que ocupou seu posto na gravadora Continental e obteve grande sucesso de público e crítica. Três anos depois, Jacob regravaria o choro com o acréscimo do trombone do Maestro Nelsinho. Com seu estilo levado que remete bem ao samba, a música ganhou letra de Hermínio Bello de Carvalho em 1979, com regravações de Ademilde Fonseca, Gal Costa, Áurea Martins, entre outras. E se tornou o maior sucesso da carreira de Jacob.
“Mamãe Coragem” (Tropicália, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome, no cinema por Glauber Rocha e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do cinema novo e do teatro oficina e de arena. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento por qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades no sul do país.
“Namorinho de Portão” (Tropicália, 1968) – Tom Zé
Lançada por Tom Zé em “Grande Liquidação”, primeiro álbum do autor, a composição se vale de uma abertura incidental da música de domínio público “Cai, cai, balão”, para, em seguida, incluir outros elementos caros à Tropicália, como a mistura sonora e a fluidez discursiva. “Namorinho de portão/biscoito, café/meu priminho, meu irmão/conheço essa onda/vou saltar da canoa”. A música foi regravada com grande sucesso por Gal Costa, no conceituado álbum que trazia, ainda, “Não Identificado” e “Baby”.
“Vapor Barato” (Tropicália, 1972) – Wally Salomão e Jards Macalé
“Vapor Barato” sofre de muitos enganos. Além de várias pessoas confundirem o título com o refrão da canção, nos inesquecíveis agudos de Gal Costa (“Oh minha, honey baby/baby…”), muitos também desconhecem sua verdadeira autoria. Não é demais imaginar que grande parte do público tenha mais acesso a regravações de outros intérpretes, como o registro feito pelo grupo O Rappa. Mas essa preciosidade da música brasileira foi composta durante o período da ditadura militar por dois rebeldes irrecuperáveis: Jards Macalé e Wally Salomão. O título original, concebido por seus autores, é uma menção ao uso da maconha.
“Pérola Negra” (MPB, 1972) – Luiz Melodia
O Brasil ainda vivia sob o domínio de uma ditadura militar quando Gal Costa tornou-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira. “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, era uma das faixas do icônico álbum “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor” – paradigma do movimento tropicalista – e trazia em seu refrão o trecho “tente entender tudo mais sobre o sexo”. Decorridas décadas e até séculos dos acontecimentos descritos o prazer da mulher, especialmente aquele sexual, parece ainda ocupar o lugar de tabu na prateleira dos costumes, mas há quem insista em mudar o curso dessa história.
“Modinha para Gabriela” (modinha, 1975) – Dorival Caymmi
Títulos não alcançam perfumes. O que se é não se altera, permanece súbito e intransponível. Assim nasceu Gabriela, assim cresceu Gabriela, alheia aos cartazes do mundo. Modinha de 1975, composta para novela da Rede Globo, a música traz em tom debochado e irreverente o esplendor da personagem. Cantada por Gal Costa e interpretada por Sônia Braga, tornou-se atemporal. Tanto é verdade que na regravação da novela feita em 2012 com Juliana Paes no papel principal teve o seu sucesso colocado à prova e renovado. Como de costume, Dorival Caymmi realiza um retrato fidedigno e lírico do ambiente baiano no qual se criou, iluminando belezas, sensualidades e as liberdades.
“Folhetim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Composta para a “Ópera do Malandro”, “Folhetim” é uma das muitas músicas que sobreviveram ao espetáculo de Chico Buarque. Interpretada por Gal Costa no ano de 1978, na companhia de Wagner Tiso ao piano, Perinho Albuquerque, autor do arranjo, Jorginho Ferreira da Silva no saxofone, e outros músicos de peso, a canção narra a trajetória simples e peculiar de uma prostituta, com uma melodia ao mesmo tempo suave e incisiva, como requer a letra. “Se acaso me quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem sim”; “Mas na manhã seguinte/Não conta até vinte/Te afastas de mim”, dizem alguns trechos. A música também foi gravada pelo próprio Chico Buarque e por Nara Leão, em outra sublime interpretação que valoriza cada palavra dita pela personagem.
“Bloco do Prazer” (frevo, 1979) – Fausto Nilo e Moraes Moreira
O compositor Fausto Nilo conheceu os integrantes do “Pessoal do Ceará” ainda na década de 70, e, desde então, passou a ser gravado por cantores como Fagner e Belchior, e, mais tarde, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, entre outros. No ano de 1979, o Trio Elétrico Dodô e Osmar, banda criada pelos inventores do trio elétrico na Bahia, lançou no carnaval a música “Bloco do Prazer”, parceria de Nilo com o novo baiano Moraes Moreira. O frevo, em ritmo acelerado, é uma conclamação desenfreada à alegria, à festa e à liberdade. Gravada por Nara Leão, em 1981, tornou-se sucesso nacional na voz de Gal Costa, um ano depois. Era apenas o início do desfile daquele cearense de Quixeramobim.
“Festa do Interior” (frevo, 1982) – Abel Silva e Moraes Moreira
Após hiato de algumas décadas, as festas juninas voltaram a ser tema de uma canção popular de sucesso no Brasil em 1982. Composta por Moraes Moreira e Abel Silva em ritmo de frevo, “Festa do Interior” foi lançada por Gal Costa. Com arranjo de Lincoln Olivetti integra “Fantasia”, um dos álbuns mais exitosos da carreira da cantora. Os versos exaltam costumes juninos em meio a declarações de amor: “Babados, xotes e xaxados/segura as pontas, meu coração”.
“Brasil” (rock, 1988) – Cazuza e George Israel
Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta versos tão sintéticos quanto rascantes, um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. “Brasil, mostra a tua cara!/Quero ver quem paga/Pra gente ficar assim!/Brasil, qual é o teu negócio?/O nome do teu sócio?/Confia em mim”. Após enumerar uma série de abusos e privações sofridas pela população brasileira, Cazuza deixa claro que o protesto e a indignação são, na verdade, uma declaração de amor. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”.
Foto: Bob Wolfenson/Divulgação.