*por Raphael Vidigal
“Tive casa e jardim.
E rosas no canteiro.
E nunca perguntei
Ao jardineiro
O porquê do jasmim
– Sua brancura, o cheiro.” Hilda Hilst
Na boca das poetas Cecília Meireles, Florbela Espanca e Hilda Hilst, o jasmim teve cantada sua brancura, o cheiro e o aroma, mas nenhuma delas priorizou o som quase mágico desta palavra de origem árabe que dá nome à flor perfumada e pequena. Tal redescoberta coube a Paula Valente, idealizadora do projeto Jazzmin’s ao lado de Lis de Carvalho. Com o miolo preservado, ao desabrochar a palavra sofreu transformações: inseriu na raiz o jazz, linguagem de origem das Big Bands, e um apóstrofo, “para não parecer que é só plural, mas também relativo ao jazz e à flor, e ficar parecido com a sonoridade que os homens que tocam jazz usam em inglês: ‘jazzman’. Então, somos as ‘jazzmin’s”, explica Lis.
A invenção do batismo se reflete na própria criação da banda, a primeira Big Band formada só por mulheres no Brasil, que lança o seu disco de estreia nesse mês de setembro, quando chega a primavera. O time congrega 17 instrumentistas: Bia Pacheco (saxofone), Carol Oliveira (vibrafone e percussão), Cindy Borgani (trombone), Estefane Santos (trompete), Fabrícia Medeiros (clarinete e clarone), Gê Cortes (baixo), Grazi Pizane (trompete), Isabelle Menegasse (trompa), Lais Francischinelli (clarinete), Lis de Carvalho (piano), Marta Ozzetti (flautas), Mayara Almeida (saxofone), Paula Valente (saxofone), Priscila Brigante (bateria), Re Montanari (guitarra), Sheila Batista (trombone) e Tais Cavalcanti (saxofone).
Caminhada. “Nas inúmeras Big Bands de São Paulo havia, praticamente, uma reserva de mercado dedicado aos homens, com uma presença feminina muito tímida”, observa Lis. Professoras da Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp), Lis e Paula Valente tiveram “uma sincronicidade” ao pensar sobre a empreitada. Única mulher do naipe de sopros da Jazz Sinfônica, Paula “sempre viveu essa minoria”. Lis cultivava “o desejo de tocar com esse tipo de formação”, uma impossibilidade que se estabeleceu porque “nunca era convidada”.
Quando a renomada jazzista norte-americana Maria Schneider, à frente de uma orquestra, se tornou atração da “3ª Mostra Tom Jobim” da Emesp, em 2012, Lis pretendeu tocar piano com ela, “mas antes de mim havia 10 possibilidades de homens, claro”, lamenta. Fã de Schneider, a experiência frustrada serviu para aguçar a vontade de dar asas ao sonho particular, compartilhado entre muitas. “Com a nossa vivência pedagógica percebemos que, dentro da música popular, essa desproporção é ainda maior. Conversando sobre o futuro das nossas alunas, vimos que esse mercado, que já é pequeno, para elas é ínfimo. Achamos importante criar esse espaço para tocar”. Surgia, em 2016, a Jazzmin’s, formada por professoras e ex-alunas da Emesp.
Madeira. O concerto inaugural se realizou logo no ano seguinte, em 2017, no Festival de Jazz do Sesc Pompeia. O princípio ideal, de ter tudo feito apenas por mulheres, com o tempo se mostrou inviável. “Não teríamos repertório suficiente porque não havia tantos arranjos e composições de mulheres”, pontua Lis. Outra essência foi mantida, a de contemplar a música brasileira. “Mas confesso que estou de olho na Maria Schneider não é de hoje, provavelmente esse dia vai chegar”, confidencia a entrevistada. Nos moldes de uma Big Band tradicional, o conjunto, como de praxe, se deu ao luxo de agregar mais algumas inovações.
Os quartetos de trompetes e trombones foram reduzidos para duplas cada um. Clarinetes, clarones, trompas e flautas tomaram o espaço vago em busca de “um som mais amadeirado”, com referência em Schneider. “Tivemos a nosso favor o fato de não haver tantas trompetistas e trombonistas no mercado. É mais complicado para a mulher, parece que há um afastamento nesse sentido de um instrumento que requer força e vigor em termos de sopro. Mas temos cada vez mais mulheres tocando trompete e trombone, inclusive dentro da escola, e que se tornaram referência, uma delas foi para os Estados Unidos, algo que leva as colegas a terem mais coragem”, celebra a musicista.
Álbum. Selecionadas pelo edital do Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo (ProAc), as instrumentistas da Jazzmin’s eternizarão em disco o repertório que se habituaram a apresentar no palco durante os últimos quatro anos. A premissa da iniciativa é valorizar composições e arranjos originais, jogando luz sobre artistas iniciantes e novos. “Quando Te Vejo”, música-título do álbum, foi composta por Rodrigo Morte, arranjador, maestro e diretor artístico, especialmente para a trupe. “O fato de ter sido o primeiro arranjo que recebemos já teve um peso. E, depois, me dei conta de que o nome tinha tudo a ver com uma das nossas propostas, que é de dar visibilidade ao trabalho da mulher como instrumentista”, elucida Lis.
Ao todo são dez faixas, com inéditas de Newton Carneiro, Rodrigo Morte, Gê Cortes e a própria Lis, casos de “Esperança”, “Fácil Vem”, “7×1” e “Sevilha”. Nos bônus, comparecem “Radamés y Pelé”, de Tom Jobim, com arranjos de Rodrigo Morte, e “Doralice”, de Dorival Caymmi, arranjada por Tiago Costa. “Pensamos em autores de notória importância para a música e a canção brasileira”, justifica Lis. Convidada para um concerto da clarinetista israelense Anat Cohen, indicada ao Grammy, no Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), que visava arrecadar doações para o tratamento de crianças com câncer, a banda ouviu da anfitriã: “Isso que eu quero!”. Juntas, elas escolheram músicas que agradavam aos ouvidos de todas as presentes, com destaque para “Radamés y Pelé” e “Doralice”, frevo de Caymmi “que encanta Anat”. E a qualquer um que ouvi-lo.
Fotos: Paulo Rapoport Popó/Divulgação; Carlos Callado/Divulgação.