100 anos de Leny Eversong e a minha 1ª matéria publicada no jornalismo

*por Raphael Vidigal

“Os adolescentes da minha geração, ávidos pela vida, esqueceram de corpo e alma as ilusões do porvir, até que a realidade ensinou a eles que o futuro não era do jeito que sonhavam e descobriram a nostalgia. Lá estavam minhas crônicas dominicais, como uma relíquia arqueológica entre os escombros do passado, e se deram conta de que elas não eram só para velhos mas para jovens que não tiveram medo de envelhecer. A crônica voltou então à seção editorial e, em ocasiões especiais, à primeira página.” Gabriel García Márquez

“Seria cômico, se não fosse trágico”, foi o que pensei na hora, com as folhas de jornal debruçadas em minhas pernas dentro do carro. Passados dez anos, vejo um certo humor no acontecido e percebo o ridículo da situação, próprio do distanciamento, que, no momento, me escapou. A reação imediata veio com uma constatação pra lá de dramática: “Era a única coisa que eu tinha: meu nome”. Quando a minha primeira matéria foi publicada no jornal, o meu nome não estava lá, ao menos parte dele. No texto sobre os 90 anos de nascimento da grande, porém esquecida cantora, Leny Eversong, a assinatura vinha como Thiago Vidigal. Dias depois, o Hoje em Dia publicou uma retificação em suas páginas.

Com o passar dos anos, o hábito retirou o impacto daquela satisfação em ver as palavras “Raphael Vidigal” impressas em uma folha de papel jornal como se gravadas para a eternidade – a noção de que, dias depois, eram então “banheiro de cachorro”, na época era irrelevante. A minha primeira matéria foi publicada graças à jornalista Patrícia Cassese, que depois eu reencontraria em diversas oportunidades na minha vida profissional, a quem confidenciei, ainda aluno de jornalismo, a proximidade da data redonda sobre Leny Eversong. Segue o texto original abaixo, com atualizações necessárias a esse centenário tão importante para a música popular brasileiro, a despeito do silêncio que reina em torno dele.

Centenário de Leny Eversong: matéria originalmente publicada em 2010

Na primeira quarta-feira do mês de setembro desse ano, a cantora Leny Eversong, dona de uma das mais potentes vozes que o Brasil já conheceu, teria completado 90 anos de idade. Leny, que nasceu Hilda Campos Soares da Silva, começou a carreira aos 12 anos, cantando no programa “A Hora Infantil”, na Rádio Clube de Santos, cidade onde nasceu.

Demonstrando desde o início seu enorme talento para interpretar foxes estrangeiros, Leny logo passou a ser chamada de Hildinha, a “Princesa do Fox”. Pouco tempo depois, ela deixaria para trás o nome em português, mas não abandonaria as canções estrangeiras, passando a se especializar também em outros ritmos, como jazz, bolero e blues. Ela, que não falava nada em inglês, anotava na mão a pronúncia das palavras e era proibida por seu empresário de dar entrevistas fora do Brasil, arriscando no máximo alguns “all right’s” e “ok’s”.

A partir da metade da década de 1950, Leny começou a receber convites frequentes para se apresentar anualmente em Las Vegas e fazer shows pela Europa, já que, a essa altura, também cantava (e muito bem) em outras línguas, como italiano, espanhol e francês, e tudo isso sem saber falar o idioma.

Apesar da enorme fama da qual já desfrutava no exterior, Leny nunca obteve no Brasil o reconhecimento que lhe era devido, e gravou poucas vezes em português, numa dessas tendo feito registros históricos de músicas que seriam sucesso mais tarde na voz de Elis Regina, a exemplo de “Aleluia” (de Edu Lobo e Ruy Guerra) e “Arrastão”, a música que lançou Elis no Festival da Canção, composta por Edu Lobo e Vinicius de Moraes.

No início da década de 1970, quando seu marido desapareceu e foi cruelmente executado junto a outros sindicalistas santistas pela ditadura militar, cuja versão oficial dava conta de que ele teria sido sequestrado por traficantes, Leny não quis saber mais de música e se refugiou por um tempo na casa do amigo e cantor Agnaldo Rayol.

Conhecida por sua figura gorda e loura e a voz que alcançava tons extremos, Leny ficou deprimida, teve diabetes e raramente apareceu em alguns programas televisivos. Nunca mais gravou um disco. Aquela figura alegre, expansiva, que falava alto e comia muito já não existia mais.

No dia 29 de abril de 1984, Leny morreu aos 63 anos, e sua voz desapareceu definitivamente.

Entre seus maiores sucessos estão “Jezebel”, gravada por ela em 1956, “Summertime” e “St. Louis Blues”, sucessos em inglês gravados em 1957. Além disso, a intérprete foi responsável por lançar o cantor Juca Chaves, ao gravar uma música sua quando ele tinha então 16 anos, e ajudou Cauby Peixoto no início da carreira.

Hoje em dia, ainda é possível encontrar seus discos sendo vendidos pela internet por preços que variam entre R$80 e R$150 e, em 2007, o jornalista e produtor musical Rodrigo Faour lançou uma coletânea de Leny Eversong através da série “Grandes Vozes”, editada pela Som Livre.

Leny Eversong tornou-se artigo de colecionador, raridade, mas sua voz poderosa, afinada e límpida é a prova maior do valor de uma cantora de inquestionável qualidade.

Fotos: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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