*por Ana Clara Fonseca
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” Eduardo Galeano
Em um mergulho no desconhecido, Rafa Castro se arriscou e nos deixou conhecer o que havia de mais cavado em seu ser. Quando a história é boa, o primeiro verso nos cativa até a última oração. Foi o que aconteceu em “Teletransportar”, que começou há dois anos em uma série de viagens pelo Brasil, junto da companheira, artista e fotógrafa Lorena Dini.
Ali nasceu o primeiro lampejo que faria do novo álbum de Rafa Castro um convite a olhar para dentro de nós mesmos e fazer um alerta sobre toda a dimensão que nos rodeia, em sua potência e unicidade. Da Ilha do Marajó, no Pará, ao lago Mamori, na Amazônia, Rafa Castro se ancorou nos sentimentos que surgiam, nas descobertas e capacidades que conhecia para escrever poesia.
“Isso tudo foi acumulando e me atravessando de maneiras múltiplas e mudando muita coisa dentro de mim, e eu fiquei com muita vontade de dizer isso poeticamente, de falar através da palavra, e que isso fosse tratado de uma maneira musicalmente universal, de que essa história, essa estética, e esse enredo fosse tratado de uma maneira múltipla, universal e comunicasse com o todo, que não fosse uma coisa regional”, conta.
Espelho. Não só universal, o novo álbum ultrapassa a relação indissociável entre espaço e tempo. Rafa Castro canta o passado, presente e futuro levando em conta almas cansadas e honestas consigo mesmas. Uma boa percepção dessa mensagem é a composição de “Cheiro de Mar”, segunda faixa do disco, e toda a produção de seu videoclipe, disponível no Youtube.
Ela coloca a natureza e suas forças como protagonistas contrárias à nossa pequenez. Deixam nossos sentimentos andando lado a lado, se misturando com a imensidão e a dicotomia de um oceano. “E essas viagens todas, nesses últimos tempos pelo Norte do país, mexeram muito comigo e me colocaram, na verdade, como se eu estivesse olhando para o espelho”, explica o artista sobre as emoções que lhe tomaram.
Percurso. Servindo tanto de quem é, o cantor e compositor carrega, como carga afetiva, influências musicais mineiras como Clube da Esquina e os trabalhos solos de Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes. Nascido na Zona da Mata mineira e vivendo em São Paulo, ele deixou seu coração bater sem medo, fazendo “Teletransportar” nos levar para uma dimensão entre o habitável e o intocável.
“A música, para mim, e a arte, sempre tiveram um papel muito forte de ressignificação dos meus dias, de me colocar tanto em contato com o chão quanto me fazer tocar o céu”. A trajetória musical de Rafa Castro como melodista foi marcada com o lançamento do álbum “Teias”, em dois pianos, junto de Túlio Mourão, compositor, arranjador e pianista mineiro.
“Fronteira”, lançado três anos antes de “Teletransportar”, é o primeiro disco em que Rafa começa a unir a canção à música instrumental, contando sobre sua mudança para São Paulo, suas inquietações, o encontro de culturas e as magnitudes da cidade grande. Mas é em “Teletransportar” que ele consegue, de fato, firmar o seu compromisso com a escrita e deixar que as palavras toquem muitos corações.
“Essas experiências todas que eu vivi, senti que só eu poderia contar. Então, eu comecei uma busca forte por dizer isso poeticamente e unir todas essas mensagens carregadas de sentimentos com as melodias que sempre compus. Eu me debrucei sobre a escrita e sobre contar poeticamente com as palavras tudo aquilo que eu tinha vivido e experenciado, tudo aquilo que eu queria falar de mais profundo juntamente com a música, essas duas paixões”.
Viagens. “A vida promove a arte também”, fala Rafa Castro, sobre como compõe um mundo de sentimentos arrebatadores de sua vida, sua trajetória, seu eu. As viagens pelo Norte do Brasil fizeram a ponte necessária para que as canções de “Teletransportar” acontecessem.
“Cicatriz” e “Baleia” são canções do disco que poderiam traduzir a experiência do cantor pelo Lago Mamori, na Amazônia, sua última viagem. Em uma caminhada para dentro da floresta, percebeu uma mata densa e jovem, era uma região que havia sido devastada na época do ciclo da borracha, sendo utilizada como pasto para gado. A mata não foi reflorestada, mas renasceu das cinzas, do nada.
“Aquilo mexeu comigo de uma maneira muito forte porque entendi que a gente não tá acabando com o mundo, a gente tá acabando com a possibilidade de vida na terra, da nossa vida na Terra”. Uma cicatriz exposta e a beleza em perceber o coração estremecer diante de um silêncio frondoso e necessário, na fugacidade do tempo.
Rafa Castro conta ainda sobre as noites que passou na Floresta Nacional dos Tapajós, na Ilha do Marajó, “vi árvores frondosas e uma natureza intocada, isso mexeu de uma maneira muito potente comigo, porque me colocou em contato com uma ancestralidade, com um entendimento que a gente faz parte de um todo”.
E nesses entendimentos de que somos unos e responsáveis pelo que nos prejudica, Rafa Castro coloca a importância de “Teletransportar” nesse momento que estamos vivendo, em meio a uma pandemia. “Acho que essa pandemia e esse lugar que a gente encontra também escancara o maltrato que a gente tá fazendo com o nosso planeta de alguma maneira, um descaso com a natureza, e um descaso com os ciclos que nos ensinam tanto, da falta que a gente perdeu de uma unicidade com o todo, achando que a gente pode fazer tudo o que a gente quer sem nenhum dano”.
Pandemia. “Teletransportar” estava com oito shows de lançamento marcados a partir de abril. Por conta da pandemia, todos foram cancelados e Rafa precisou repensar a estreia do disco. “A música mesmo respondeu por mim, acho que eu precisava lançar esse disco porque eu sentia um compromisso com essa transformação, eu acho que o disco, mesmo não tendo sido composto na pandemia, ele falava de uma maneira muito clara com a ordem do dia e com o horror todo que a gente percebeu politicamente, e, enfim, a maneira como foi tudo conduzido. Eu acho que estava tudo muito implícito e explícito mesmo nesse álbum”.
“Teletransportar”, música tema do álbum, é que mostra o olhar de Rafa Castro sobre a situação política do país. O tele transporte poderia ser a discussão atual no governo brasileiro, mas ainda estamos muito distantes. Estamos em retrocesso, parados no tempo, sem perspectivas, sem ministros, sem sensibilidade e um pingo de complacência. “Eu sempre digo que enquanto eu gostaria que o raio laser viesse na cesta básica, infelizmente a gente tá tendo que voltar a discutir noções muito básicas de respeito e humanidade”, expõe Rafa.
Sobre a fala do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no dia 22 de abril em uma reunião ministerial, que sugere aproveitar o foco da pandemia para “passar reformas infra legais de regulamentação, simplificação” a respeito dos regramentos do IPHAN, ministério do Meio Ambiente, e da Agricultura, Rafa Castro comenta: “É o retrato desse governo, de quão ganancioso é em detrimento a todo o cuidado com as pessoas em meio uma pandemia”.
E apesar de toda a descrença com esse governo e a crença de que essa é uma batalha difícil e resistente para resgatar o que nos resta de humanidade, Rafa Castro se coloca como um sonhador por um mundo mais fraterno.
“Enquanto eu penso em teletransportar
Escuto triste a TV
Me parece que o mundo não saiu do lugar
Pois o poder
Cega o óbvio
De que a ganância envenena tudo
E ergue muros destilando ódio
Derrama sangue (lama) e miséria sempre pelo chão
Mas sonho com um mundo mais fraterno
Pois sei que ditadores morrerão
Assim o arco da história nos insiste em contar
Que tudo vai passar
Enquanto eu penso em teletransportar”
“Como diz o Frei Beto: ‘Deixemos o pessimismo para dias melhores’. Acho que isso é um pouco da minha visão sobre o nosso momento e que a gente tem que ser firme e forte para lutar e escancarar o horror, e não normatizar, não normalizar tudo isso que a gente tem visto na TV”, declara Rafa.
Mudanças. “Teletransportar” é disco que explorou a ligação de Rafa Castro com as artes. Da música, passando pela literatura, cinema, e alcançando uma grandiosidade em seu repertório. Em um formato minimalista, gravado com um pequeno número de instrumentos junto de grandes músicos, o disco foi produzido em fevereiro deste ano. Foram cinco dias dentro do estúdio gravando todo o projeto.
“Eu fiz os arranjos, mas a gente passou muito tempo dentro do estúdio antes de gravar, ensaiando, preparando, ouvindo o que as canções tinham a dizer, amadurecendo a nossa maneira de tocar junto para que fosse uma simbiose máxima, que a gente conseguisse fazer uma troca muito profunda dentro do estúdio, e foi isso que aconteceu”, relata.
E dessa simbiose nasceu o álbum que mais revelou Rafa Castro até hoje. Ele conseguiu unir o seu sentir à natureza, à melodia, à canção. Em águas rasas, profundas e fluidas, o transparente das águas e do espelho ligados como um só. “Cristalino”, “Cacos de Vitral”, “Marajó” e “Depois da Chuva” são as canções dos rios que transpassam o tempo e desaguam nos espaços internos e externos.
Fluir. Nesse jogo de palavras e sentidos entre espelhos e águas, Rafa Castro nos presenteou com os seus sentimentos mais profundos e, ao mesmo tempo, nos colocou frente a frente com os nossos. De sombra à luz, mostrou sua alma desnuda gritando por um mundo mais gentil. “Teletransportar” é um olhar para a janela do mundo. “Esse disco foi um pouco mais condensado na minha figura e eu acho que isso me trouxe um amadurecimento de linguagem, de entendimento das minhas virtudes, acho que entendi melhor o meu papel”, analisa.
“Teletransportar” está “à beira de um poema” de Adélia Prado e nas viagens que se fizeram história e literatura de Guimarães Rosa. Encaixou melodia em cada pequena letra, e fez acontecer versos cheios de tons e emoções. Rafa Castro é aquela parte que faltava em um clube das várias esquinas do país.
“Eu acho que fortaleci meus laços com a canção sem perder o meu amor pela música instrumental. Estabeleci laços mais profundos com a poesia. Acho que sou um artista um pouco mais disposto e mais curioso, mais atento às buscas que estão dentro do meu coração”.
Fotos: Lorena Dini/Divulgação.