Musa de ‘Frevo Mulher’, Amelinha chega aos 70 anos e prepara live

 

*por Raphael Vidigal

“de ser meio
e meio ser
sem deixar
de ser inteiro
e nem por isso
desistir
de ser completo
mistério” Paulo Leminski

De sua casa, ele ouvia uma criança de 2 anos cantar. Seu Dico foi “o primeiro fã” de Amelinha, como a cantora, que acaba de completar 70 anos, relembra. “Era um senhor amigo de papai. Eu ficava encabulada. Nem falava direito ainda”, conta. Em meio aos versos da cantiga, “Meus senhores, quando matei Açucena/ Eu não estava em meus sentidos/ Perdoa, linda, Açucena/ Por este caso acontecido/ Perdoa, linda, Açucena/ Por amor de um Deus onipotente”, ela trocava a palavra final por “ornipotente”, acrescentando um ‘R’ inexistente. A música, de forte teor machista, fazia parte do folclore cearense que Amelinha aprendeu desde cedo.

“Borboleta pequenina que vem para nos saudar/ Venha ver cantar o hino que hoje é noite de Natal”, regravada por Marisa Monte em 1991, também integra o repertório de sua memória afetiva, ao lado dos cantos das rendeiras, do pastoril e sua eterna luta entre o cordão encarnado e o azul, e de benditos e hinos religiosos aprendidos no colégio de freiras onde ela estudou, da ordem Josefina, adepta do voto de pobreza. “A chuva já vem caindo/ Nos campos do meu sertão/ Minha vida está sorrindo/ Bem dentro do coração/ Abriu-se a flor da munguba/ Cheirosa e de linda flor/ Nas palmas da Carnaúba/ O vento fala de amor”, era outra canção entoada na meninice. “Sempre se fala de chuva no sertão”, repara a cantora, nascida em Fortaleza.

Caminhada. Os primeiros passos da trajetória profissional foram dados com o apoio do conterrâneo Fagner. Na década de 1970, eles migraram juntos para São Paulo, na companhia de Belchior (1946-2017) e Ednardo, e logo ficariam conhecidos como o “Pessoal do Ceará”. No entanto, a intenção de Amelinha era diferente da dos colegas. Professora do ensino fundamental, ela trabalhava em uma petroquímica em sua cidade natal e “fugia dessa coisa de cantar”, confessa. Apesar disso, os companheiros a estavam constantemente incentivando. Na metrópole paulista, ela começou a cursar Comunicação Social. “Admiro a profissão de jornalista, acho que eu faria crônicas ou seria âncora. Não seria uma jornalista política, é demais para o meu coração, você precisa ter uma frieza. Mas a minha onda era cantar, um outro tipo de comunicação”, declara.

Na faculdade, ela se apresentava com uma bandinha. Fagner, porém, insistia em tirá-la da zona de conforto. “Quando me convidavam, a minha primeira reação era dizer ‘não’. Acho que por medo de encarar a situação. Eu não sabia que ia ser cantora profissional, teria que formar um repertório. Mas, aí, já conhecia o ‘Pessoal do Ceará’ e fui conhecendo os baianos, pernambucanos, paraibanos, como Moraes Moreira (1947-2020), Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, e as coisas foram clareando”, informa. Ao subir ao palco do Teatro Municipal de São Paulo, com Fagner, ela “chamou atenção sem querer”. A primeira coisa que ouviu, iluminada por um canhão de luz, foi “gostosa!”, segundo Amelinha, “em tom de brincadeira”. “Digo: ‘Ai, meu Deus! E agora?’. Palco não é fácil”, afiança.

Poeta. “O fato dele querer me conhecer foi um choque!”. Amelinha refere-se a Vinicius de Moraes (1913-1980), à época consagrado como poeta e letrista de canção popular. Ainda casada com o primeiro marido, Maxim, a residência da intérprete transformou-se em “uma sucursal dos cearenses”. Vinicius fez chegar, através de Fagner, o desejo de se encontrar com a anfitriã. Com o Poetinha e Toquinho, ela excursionou, em 1975, para o Uruguai, passou por Punta del Este e se viu cantando no famoso cassino San Rafael. “Em Fortaleza, cantava com uma amiga as músicas do Vinicius com o Quarteto em Cy, e, de repente, estava ali com ele, parecia um sonho”, diz. Na viagem, ela criou uma versão para a música “A Gia”, que depois seria gravada com o grupo Roupa Nova, à capela, no disco “Água e Luz” (1984).

Para completar, ganhou “Ai, Quem Me Dera!”, de Vinicius, lançada por Clara Nunes (1942-1983) e regravada pela entrevistada em 2013, no álbum “Janelas do Brasil”, produzido por Thiago Marques Luiz, que revigorou sua carreira. Com Vinicius, “os assuntos eram muito ricos, conversas inteligentes de poucas palavras”. “Ele era muito amoroso, doce, gostava de mim porque eu sempre li muitas crônicas, papai comprava as revistas Cruzeiro e Manchete, e eu lia Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Fernando Sabino (1923-2004). Quando contei isso ao Vinicius, com 24 anos, ele ficou encantado”, orgulha-se. Ela teve acesso, em primeira mão, ao “Poema Sujo”, enviado em uma fita-cassete por Ferreira Gullar (1930-2016) a Vinicius. Já Toquinho, “ficava horas lixando a unha com seu violão”. “Os dois compunham espontaneamente”, sublinha.

Disco. Amelinha não tinha disco quando tudo isso aconteceu. O único registro de sua voz havia ocorrido em uma participação na faixa “Ausência”, para o LP “O Romance do Pavão Mysteriozo” (1974), de Ednardo. Com produção de Fagner, ela estreou no mercado fonográfico com “Flor da Paisagem” (1977), cuja “capa muito mimosa” ainda a encanta. “As capas dos meus discos são muito solares, que é o meu jeito de ser. Antigamente, as amigas que brigavam com os namorados adoravam conversar comigo, porque eu as colocava para cima, detesto coisa que fica patinando, sem saber para onde ir. Comigo é ‘levanta, sacode a poeira, dá volta por cima’, é uma lição que aprendi com a minha mãe”, destaca. Por sinal, a matriarca adoçava o lar com cantorias, assim como as tias freiras, que venceram prêmios e foram proibidas pelos irmãos de cantar no rádio.

A avó tocava bandolim e um tio que se formou na França a ensinou a apreciar Édith Piaf (1915-1963), Yves Montand (1921-1991) e Barbara Brodi (1930-1997), o que Amelinha aliou às influências que sofria de Dorival Caymmi (1914-2008), Nara Leão (1942-1989), Angela Maria (1929-2018), Elizeth Cardoso (1920-1990), Dalva de Oliveira (1917-1972), Gal Costa, Claudette Soares, João Gilberto (1931-2019), Astrud Gilberto, Elis Regina (1945-1982), Sarah Vaughan (1924-1990), Ella Fitzgerald (1917-1996), Joan Baez, Maria Bethânia, Célia, Vicente Celestino (1894-1968), Wanderléa, Vanusa, Mick Jagger e os Beatles, em um caldeirão que ajudou a moldar a personalidade artística da cantora. “Gosto de estar com pessoas jovens, essa nova geração tem uma questão de coletividade muito interessante. Ao mesmo tempo, eles têm uma reverência pela minha caminhada, como tenho com a Ellen de Lima, que conheci em um show em homenagem à Dalva de Oliveira e me manda mensagem até hoje”, observa.

Musa. “Não deu nem tempo de o técnico (de som) apertar o botão” e Dominguinhos (1942-2013) já desfiava com frenesi a sua sanfona. Além dele, participaram da gravação de “Frevo Mulher” o autor Zé Ramalho (violão), Geraldo Azevedo (violão) e Wilson das Neves (percussão). “É uma explosão, uma energia contagiante”, define Amelinha, responsável por lançar o hit em 1979, no álbum homônimo que lhe valeu o disco de ouro pelas mais de 100 mil cópias vendidas. A entrega da intérprete à canção tinha mais um motivo. “Sou a musa da letra”, aponta. Ela e Zé Ramalho haviam acabado de começar a namorar e se encontravam no Hotel Plaza, no Rio. Eles seriam casados entre 1978 a 1983, e teriam dois filhos. No estúdio, Ramalho via os compositores levarem músicas para Amelinha e serem recebidos com leveza e simpatia.

Logo, cunhou o verso “Quantos elementos amam aquela mulher”. O trecho “Quantos aqui ouvem os olhos de fé”, recebeu um adendo de Amelinha, que incluiu a palavra “eram”. “O Zé tem esse lado profético, visionário. E eu canto ‘eram’ como um testemunho”. Ela percebe ainda “uma estranheza de misturas planetárias” na canção. “Tem horas que parece tango, depois passa para uma coisa portuguesa, com influências árabes, da Turquia, meio indiano e com um acento muito forte do chão nordestino. O Zé tem uma forma de escrever com metáforas muito interessantes, ela é exótica. Tem gente que já me falou que nem sabe o que está cantando, mas gosta da música. Eu não sei explicar, cada um que ache o seu significado”, incentiva. No mesmo LP, ela lançaria “Dia Branco”, de Geraldo Azevedo e Renato Rocha, elevada a espécie de hino matrimonial.

Festival. Uma nova explosão tomou conta da vida de Amelinha em 1980. Meses antes, em agosto de 1979, ela havia dado à luz a seu primogênito, João. Em Fortaleza, a cantora recebeu a notícia de que Luiz Ramalho (1931-1981) tinha uma música para ela. Como mãe e artista, ela admite que a jornada “era bem complexa”. “Naquele tempo, as pessoas eram mais confiáveis. Minha mãe e minha irmã, que é médica e realizou o meu parto, me ajudaram muito. Vim para o Rio com a babá”, afirma. Quando se deu conta, Amelinha cantava “Foi Deus Que Fez Você” para uma multidão no Maracanãzinho. Classificada para a final, a canção tirou o segundo lugar no festival MPB-80 da Rede Globo. “Desde os ensaios, no Riocentro, notei que a música causava um impacto sobre a plateia. Os festivais eram um bom termômetro. O que tirou um pouco do sabor é que passaram a mostrar as canções antes, perdeu o charme da surpresa”, sustenta.

Apesar de não faturar o prêmio, “Foi Deus Que Fez Você” rendeu a Amelinha o seu primeiro disco de platina, com mais de 1 milhão de cópias vendidas. “Tiveram que correr para prensar um compacto duplo, nem a gravadora acreditava. De vez em quando, alguém leva o disco intacto para eu assinar, com aquela capa lindíssima, onde eu estou com uns teares, cheia de penas, bem tropical”, celebra. Dois anos depois, ela deu voz ao tema da trilha sonora da minissérie “Lampião e Maria Bonita”, da Globo. Composta pelo então marido Zé Ramalho, “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor” batizou o álbum de 1982. Na sequência, “Romance da Lua, Lua” (1983) apresentava uma tradução ao poema do espanhol García Lorca (1898-1936).

Homenagem. O silêncio dominou Amelinha quando ela perdeu o amigo Belchior, em abril de 2017. “Fiquei uma semana travada, foi um momento difícil de entender, tudo que aconteceu foi muito súbito. A gente tinha uma amizade de vários anos, desde a época em que ele ficava hospedado lá em casa, vi ele fazendo muitas músicas. Depois, quando as coisas começaram a acontecer para todos nós, o contato já não era mais tão intenso”, recorda. Certa vez, eles se encontraram nos bastidores de um programa de TV, em São Paulo, e, após “cantar bem baixinho, no camarim”, Belchior confidenciou que adoraria ouvir “De Primeira Grandeza” na voz de Amelinha. “Quando eu estou sob as luzes/ Não tenho medo de nada/ E a face oculta da lua, que é a minha/ Aparece iluminada”, elucida a abertura da música que intitula a homenagem de Amelinha a Belchior.

Com nove canções do autor de “Paralelas”, “Alucinação”, “A Palo Seco” e “Mucuripe” (parceria com Fagner), o tributo chegou à praça em outubro de 2017. “As observações do Belchior a respeito da existência permanecem atuais. Gostei muito dos arranjos contemporâneos do disco. Canto com carinho, me lembrando dele, das brincadeiras, é bem emocionante”, assinala. Da convivência íntima, ela guarda as lembranças de “uma pessoa cordial, amorosa, um gentleman”. “Lembro da última vez em que jantamos. Ele me levou a um restaurante em São Paulo, na famosa Mercedes que depois abandonou em um estacionamento. Comemos fettuccine ao funghi e bebemos vinho. Depois, ele me mostrou o ateliê aonde adorava pintar e fumar aquele charuto. Era uma pessoa intensa e bastante divertida”, assegura.

Pandemia. No próximo dia 31 de julho, Amelinha realiza a sua primeira live, em um projeto do Sesc Iguatu, do Ceará, como parte da campanha Sintonia do Bem, que tem como objetivo arrecadar doações para atender instituições carentes. Acompanhada por 4 músicos, ela vai cantar sucessos de sua trajetória, às 20h. Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao país e vitimou, até agora, mais de 80 mil brasileiros, Amelinha não saiu de casa. Por falta de condições técnicas e logísticas, ela recusou convites de Ivete Sangalo e Fabiana Karla para participar das lives de São João no último mês de junho. A artista mora no quarto andar de um prédio em Niterói, no Rio, “em uma região oceânica, mais arborizada, longe da agitação urbana e da poluição”. “Aqui é urbano light”, diz.

“Estamos em um cenário de guerra, um Deus nos acuda. Uma mistura meio caldeirão e meio geleia, em que cada um diz uma coisa. A situação é justamente para as pessoas se entenderem melhor e buscarem um consenso. Não podemos ignorar a dor dos outros, precisamos estar juntos”, pede. Indagado sobre as mortes pela Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro disse que não era coveiro. Noutra ocasião, respondeu com “E daí?”. Ele também ignorou as recomendações do próprio Ministério da Saúde, atualmente ocupado por um interino, o que levou à demissão de dois ministros da pasta. “Não adianta teimar, senão vamos destruir a natureza e o ambiente já tão maltratado pelo excesso de atuação econômica das indústrias. O Brasil tem uma riqueza natural estrondosa, mas, se continuarmos a destruição nessa velocidade, veremos cada vez mais cataclismas no mundo”, orienta.

Política. Na visão de Amelinha, o mundo “anda capitalista e consumista demais, cheio de vaidade e narcisismo”. “O Brasil é um país numeroso e muito desigual, o que tem a ver com a política das nossas classes dominantes, que sempre foi de dar de pouquinho, de não dar tudo ao povo”, opina. “Tivemos progressos na ciência que não se refletem na nossa saúde pública. Os hospitais não funcionam, não existe saneamento básico, as pessoas habitam lugares perigosos, isso tudo porque não houve uma urbanização adequada, seguindo as prevenções dos arquitetos às autoridades. Nossos problemas atuais são consequências de erros e displicências históricas, e aí surge uma coisa que foge ao controle e, na minha opinião, tem uma conotação espiritual, da própria natureza, de Deus, de mostrar que precisamos ser mais solidários”, reflete.

De acordo com ela, “os impactos fazem as pessoas se tocarem, mas tem uma ala cega que insiste em viver naquela velocidade que a situação não permite mais”. Cada vez “mais espiritualizada, em constante aprendizado”, Amelinha revela conversar com os anjos. “Eles estão em uma batalha transcendental muito forte, porque são muitas manifestações de ódio e intolerância, parece a Torre de Babel, todo mundo fala e ninguém se entende”, compara. Nesse cenário, a exemplo das Olimpíadas e de outros eventos, ela gostaria de adiar o aniversário de 70 anos para o ano que vem, mas garante nunca ter tido problemas com a idade. “É uma longa jornada e, dentro do meu coração, o que permanece são os encontros e momentos bons, o saldo é positivo. Passei por dificuldades, mas não fiquei com traumas. Como janelas de um quadro que vão se acendendo, tudo ficou impresso em um tempo sem passado, presente ou futuro”, arremata.

Fotos: Murilo Alvesso/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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