*por Raphael Vidigal
“a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta” Ana Cristina Cesar
Vania Toledo (1945-2020) trabalhou com filmes de rolo até o final da vida. Ela preferia o analógico ao digital, e tinha consciência de que “a imagem é atemporal”, como declarou em entrevista. A fotógrafa mineira, nascida em Paracatu, que migrou para São Paulo no início da década de 1960 e por lá ficou, buscava a profundidade através dos artifícios da superfície. O início da trajetória aconteceu no teatro. Em plena ditadura militar, ela registrou montagens contundentes para clássicos do porte de “O Balcão”, de Jean Genet (1910-1986), “Macunaíma”, de Mário de Andrade (1893-1945), “Afinal, Uma Mulher de Negócios”, de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), e outros, em que futuros astros como Tonico Pereira, Marília Pêra (1943-2015), Raul Cortez (1932-2006) e Dina Sfat (1938-1989) ganharam os contornos de sua lente aguçada.
Paralelamente, atuava em redações de jornais. Fotógrafa da noite, Vania gostava do preto & branco, a exemplo de vários de seus pares. Nas boates e casas de shows, captava a pulsação do ambiente. Quando teve a oportunidade de fotografar o ídolo Andy Warhol (1928-1987), notou que ele era tão montado quanto as travestis que brilhavam frente à sua câmera. O trampolim para as capas de disco veio naturalmente. Vania convivia com aquelas personalidades com o despojamento que lhe era peculiar. Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Rita Lee, As Frenéticas e Guilherme Arantes foram alguns dos clicados por ela. Assim como Cazuza (1958-1990), que, em 1987, tornou-se alvo de um “flagra” ao lado do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996). Ambos morreriam por complicações decorrentes da Aids nos anos 1990.
Logo, a efervescência da revolução de costumes que Vania veria começar com a minissaia e terminar com “o sexo pelo sexo” seria abandonada por ela, abalada com a perda de tantos amigos para o vírus HIV. Antes, porém, daria uma contribuição fundamental à cultura brasileira: o livro “Homens”, publicado em 1980, com nus de anônimos e celebridades próximas, casos de Ney e Caetano, quando a nudez masculina era ainda um tabu que desafiava não somente o regime militar como a própria moral conservadora da época. Tempos depois, convidou mulheres para posarem com figurinos inusitados, na série “Personagens Femininos”, em que elas deveriam dar asas à imaginação. A escritora Cassandra Rios (1932-2002) saiu-se de Roberto Carlos. Fernanda Montenegro e Norma Bengell (1935-2013) também participaram.
Em 2018, ela estreou a exposição “Tarja Preta”, no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo. O nome aludia tanto à medicação, utilizada “para se libertar”, segundo Vania, quanto ao instrumento de censura. A artista recuperou fotos antigas e produziu novas, com figuras como Laerte, Luana Hansen e a dupla As Bahias e a Cozinha Mineira. Rebelde, ela se opunha tanto ao autoritarismo careta da direita quanto à patrulha ideológica da esquerda, e se ressentia da falta de humor e irreverência de ícones LGBTQI, citando o grupo de transformistas Dzi Croquettes, que eclodiu na década de 1970. Fazia parte de seu processo ter longas conversas com os modelos antes de disparar o flash. Assumidamente posados, seus retratos revelam os desejos que liberamos quando nos sentimos protegidos por uma máscara.
Fotos: Vania Toledo/Divulgação.