*por Raphael Vidigal
“És a filha dilecta da noss’alma/ Da noss’alma de sonho e de tristeza,
Andas de roxo sempre, sempre calma/ Doce filha da gente portuguesa!
Em toda a terra do meu Portugal/ Te sinto e vejo, toda suavidade
Como nas folhas tristes dum missal/ Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!…
Andas nos olhos negros, magoados/ Das frescas raparigas. Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!/ Também te trago n’alma dentro em mim,
E trazendo-te sempre, sempre assim,/ É bem a Pátria q’rida que eu embalo!” Florbela Espanca
“O fado é triste porque é lúcido”. A constatação de Amália Rodrigues (1920-1999) demonstra o domínio que ela possuía sobre o gênero do qual se tornou a sua intérprete maior, sendo reconhecida como diva, rainha e voz do fado, dentre outras adjetivações hiperbólicas, à altura da cantora nascida há cem anos em Lisboa, capital de Portugal. Os pais, pobres, a deixaram para ser criada com os avós em Fundão, numa província conhecida como Beira Baixa, onde Amália tomou contatou com as cantigas do folclore português que consagraria para a posteridade, casos de “Alecrim”, “Quando Eu Era Pequenina”, “O Trevo”, “Rapariga Tola, Tola”, dentre outras, com uma afinação impecável, a serviço da extensão no cantar que se coadunava com a expressividade dos gestos. Invariavelmente de xale preto, Amália garantia que nunca cantava igual, porque vivia sob constante mudança interna.
Após quatorze meses, sem lograr êxito na tentativa de arranjarem bons empregos, os pais de Amália retornam e a registram como nascida no dia 23 de julho. Porém, a data exata do nascimento continua desconhecida. A avó conta para Amália que ela veio ao mundo “no tempo das cerejeiras”, entre maio e julho, o que a leva a comemorar o aniversário no dia 1º de julho. Mesmo com o regresso dos pais, Amália continua morando com os avós durante a adolescência e recebe uma educação rígida. A avó, analfabeta, a matricula aos 9 anos na escola, mas decide tirá-la aos 12, para que Amália ajude no sustento da casa.
Os ofícios se sucedem para a menina: bordadeira, engomadeira, costureira, operária em uma fábrica de chocolates e rebuçados. Mas a música parece chamá-la insistentemente, como um destino, palavra herdada do latim que deu origem à expressão “fado”, no sentido de “fatalidade”. “O fado é uma resignação frente à angústia das perguntas sem respostas”, declarou Amália. No entanto, a mesma palavra também originou a expressão “fada”, nutrida de mágica. Como vendedora de frutas no Cais da Rocha, Amália passa a receber trocados ao anunciar a mercadoria com cantorias que destacam a melodia de sua voz. Ao chegar em casa, a avó a repreende com palmadas por cantar em público.
Nada disso detém o canto contido no peito de Amália. Aos 15 anos, a jovem intérprete é convencida a se inscrever no Concurso da Primavera para disputar o troféu de Rainha do Fado. Ao decidir participar, Amália tem uma surpresa: todas as outras concorrentes desistem para não ter que duelar com ela. Um prenúncio de que o título em disputa seria sempre de Amália. O concurso que nunca aconteceu lhe dá a oportunidade de finalmente aceitar o convite para se apresentar no Retiro da Severa, a mais famosa casa de fados de Portugal, em 1939. É quando conhece o guitarrista Francisco da Cruz, seu primeiro marido, de quem se divorcia nove anos depois. O segundo matrimônio é com o engenheiro César Henrique, no Rio de Janeiro, e perdura até a morte dele.
Em 1943, Amália deixa o país pela primeira vez, rumo a Madrid, na Espanha, para atuar em uma celebração da embaixada portuguesa, onde entoa “Foi Deus”, de Alberto Janes, e sai aclamada. É o início de um périplo pelo mundo, no qual ela investe como uma espécie de missionária da música portuguesa. O Brasil é o próximo destino, e permanece em seu coração. Aqui, ela grava compactos pela Continental, fica quatorze semanas seguidas em cartaz no Cassino da Urca e ganha espetáculo feito sob medida para ela. A exemplo de Carmen Miranda, logo chama a atenção de Hollywood. Repete o sucesso em terras ianques, mas recusa o pedido para se estabelecer na América. Suas raízes estavam fincadas em Portugal, onde atua em filmes, peças teatrais e protagoniza “Capas Negras”, responsável por um recorde de bilheteria no cinema lusitano em 1947.
“Uma Casa Portuguesa” simboliza essa devoção à pátria. As tertúlias promovidas em sua morada se tornam famosas e geram, inclusive, discos. Num deles, o poeta Vinicius de Moraes revela o que mudaria no povo português: o formalismo excessivo. “Os portugueses precisam se desengravatar”, diz. Outra admiradora confessa de Amália no Brasil é a cantora baiana Maria Bethânia, que a equipara a Édith Piaf, Billie Holiday e Judy Garland no panteão das supremas. A gravação de Amália para o clássico “Nem Às Paredes Confesso”, de Artur Ribeiro, populariza a canção em solo tupiniquim, e rende regravações de Nelson Gonçalves, Angela Maria, Roberto Carlos e Agnaldo Rayol.
As glórias de Amália se estendem por todos os continentes. Japão, Austrália, México, Israel, Bélgica, Uruguai e uma infinidade de localidades a recebem. Absoluta, a diva canta em castelhano, galego, francês, italiano e inglês. Em comum, a excitação dos aplausos. Todavia, há dissabores na caminhada. Admirada pelo ditador Salazar e utilizada como propaganda pelo regime, Amália é acusada de aderir à ditadura, o que a traz profunda amargura. Uma foto registrada em junho de 1975, em uma manifestação do Partido Socialista após a Revolução dos Cravos que restabeleceu a democracia no país, deixa claro o seu posicionamento.
Na ocasião, ela é vista em sua varanda e conclamada a descer para perto do povo, e não pensa duas vezes. Orgulhosamente, toma a rua com sua gente. Clandestinamente, durante os anos de tirania salazarista, Amália escondia e protegia refugiados políticos e fazia doações secretas para o Partido Comunista Português. Amparada pelas tradições, ela provoca uma renovação no fado português, mantendo intacta a sua essência. Além da guitarra e da viola portuguesa, inclui o piano em registros fonográficos. Canta Luís de Camões, Dom Dinis e poetas contemporâneos, como Pedro Homem de Mello, David Mourão Ferreira, Manuel Alegre e Alexandre O’Neill.
Em “Barco Negro”, originalmente uma versão para “Mãe Preta”, dos brasileiros Caco Velho e Piratini, que acaba censurada pelo regime militar e ganha nova letra de David Mourão, ela define toda a natureza do fado: “Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir/ Pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo”. A passionalidade como invólucro da nostalgia surge ainda mais lancinante em “Lavava no Rio, Lavava”, de sua autoria: “Já não temos fome, mãe/ Mas já não temos também o desejo de a não ter”. À licença do clichê, tão próprio dos desenganos, não é à toa que a língua lusa é a única que possui “saudade”. “Tudo isto existe/ Tudo isto é triste/ Tudo isto é fado”, canta para sempre Amália.
Fotos: Fundação Amália Rodrigues/Divulgação.