*por Raphael Vidigal
“E eu sinto como se estivesse me desenrolando por inteira, até sobrar apenas um núcleo cru.” Lesley Nneka Arimah
Há 825 dias a vereadora carioca Marielle Franco (1979-2018), mulher, negra, bissexual, filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), foi executada no Rio de Janeiro com quatro tiros, ao lado de seu motorista, Anderson Gomes (1979-2018), em crime até hoje não elucidado pela polícia. No milênio passado, Anastácia, nascida em Pompéu, no interior de Minas Gerais, foi escravizada e, ao resistir a tentativas de estupro e manter-se virgem até o final da vida, acabou torturada, inclusive com o uso de uma máscara que lhe tampava a boca, afixada através da cabeça e do pescoço, e sofreu inúmeros espancamentos que a levaram à morte. Taslim é a prova de que gritos assim não se silenciam com o tempo.
O nome de registro da carioca de 28 anos, natural da Vila da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro, é uma homenagem “à mulher que foi escravizada no século XVIII e virou uma mártir pra nós”, conta. Formada em Jornalismo pela PUC-Rio, a artista se interessou pela música na infância, quando frequentava a Igreja Católica e, em 2013, se inscreveu no Curso Básico da Escola de Música Villa-Lobos, com foco em canto e teoria musical. No último Dia dos Namorados, a cantora divulgou o clipe de “Pretinha”, parte de seu álbum de estreia, “Pretambulando”, em que celebra o amor entre duas mulheres negras. Após um intercâmbio na África do Sul, ela se rebatizou de “Felicidade” numa das línguas nativas do Malawi, país da África Oriental.
Qual a importância de se abordar o amor entre duas mulheres negras no Brasil que elegeu Jair Bolsonaro à presidência em 2018?
Se a negritude te faz sofrer racismo e ser mulher te faz sofrer com o machismo, imagina quando você é uma mulher negra e lésbica/bissexual? Já existe um acúmulo de dores e preconceitos que é ainda mais enfatizado pela lesbofobia. O presidente Jair Bolsonaro foi eleito com base em um discurso de ódio camuflado de liberdade de expressão, que se alastrou pelo país. Segundo pesquisa da Organização de Mídia Gênero e Número, 92,5% de entrevistados LGBTQ+ identificaram crescimento da violência contra esse grupo após a eleição do presidente. Da mesma forma, pesquisa do Datafolha mostra que 9 a cada 10 pessoas entendem que a violência contra mulheres também aumentou neste período. Todas essas agressões que recaem sobre pessoas negras, mulheres e LGBTQ+ são muito cansativas, porque fazem com que a gente viva frequentemente na defensiva, esperando o próximo ataque. Para mim, trazer esse amor da forma positiva e natural que a gente traz em “Pretinha” é uma forma de sair de um lugar de dor para um lugar de amor. Falar de coisas boas, normalizar esse afeto é uma maneira de, pelo menos por alguns momentos, imaginar que não é necessário levantar a voz para que duas mulheres andem de mãos dadas e celebrem seu amor em público. É uma resposta que foca mais em nós do que neles.
O videoclipe foi filmado no Maranhão e teve toda sua equipe formada por mulheres. Como essas questões contribuíram para o resultado que você procurava?
Normalmente, quando duas mulheres aparecem se relacionando nas artes, ou elas são representadas num lugar de apagamento, como se vivessem se escondendo, ou num lugar de sexualização, reproduzindo uma visão fetichizada que preenche o imaginário masculino. Quando temos mulheres não só atuando, mas também contando essas histórias na escrita, na direção e na estética, por exemplo, tudo muda, porque o que está sendo mostrado é fidedigno e não estereotipado. Então, ter apenas mulheres à frente desse projeto é o diferencial que faz com que ele capte a essência desse amor a partir de um olhar feminino e real. Além disso, esse direcionamento dá oportunidade para que essas mulheres mostrem o seu trabalho e se desenvolvam profissionalmente, já que elas são menos de 1% da produção audiovisual. Nesse sentido, para além de mostrar as belezas do Estado, gravar esse videoclipe no Maranhão também é uma maneira de fazer essa roda girar fora do eixo Sul-Sudeste. Precisamos saber que há mulheres negras profissionais e competentes não só em uma parte do país, mas em todo o Brasil. Como disse (a atriz e produtora norte-americana) Viola Davis, “a única coisa que separa mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade”, e eu faço tudo que está ao meu alcance para que, de minha parte, não seja isso a faltar.
Como tem visto os recentes movimentos antirracistas nos Estados Unidos que tomaram conta do mundo e quando essa luta teve início na sua vida?
É muito ruim e doloroso que pessoas precisem morrer para que o racismo seja pautado, já que ele é exposto na nossa cara diariamente, e não é só nos Estados Unidos. O Brasil é um dos países que mais mata pessoas negras no mundo, a cada 23 minutos um jovem negro é morto. Então é irônico quando os mesmos brasileiros que não se movimentam para lutar contra as injustiças que acontecem aqui, fazem isso quando se trata de um caso externo. Ainda assim, acho importante que esse assunto seja pautado e que tome as redes, mas apenas para que haja um real movimento de mudança, principalmente por parte da população branca que se diz antirracista. Elas precisam se posicionar e realmente tomar partido nesse movimento. Eu, particularmente, não consigo precisar quando a luta antirracista se iniciou na minha vida, mas diria que ela ficou mais evidente quando eu comecei a perceber as injustiças que as pessoas negras, inclusive eu, sofríamos. Meu nome de registro, Tassia, já traz a minha história enquanto mulher preta. É uma homenagem a Anastácia, uma mulher que foi escravizada no século XVIII e virou uma mártir para nós. Eu sempre tive uma proximidade muito grande com a cultura negra, principalmente por meio da música, mas, certamente, foi depois que fiz meu intercâmbio na África do Sul, que algumas questões ficaram mais evidentes para mim.
De que maneira a experiência na África do Sul interferiu em sua trajetória e qual foi a sensação mais marcante de estar no continente africano?
Eu digo que a minha vida se divide em antes e depois do período que passei na África do Sul, porque foi muito transformador para mim estar lá. Eu ainda não sabia, mas foi lá que eu me tornei Taslim (nome que significa “felicidade” em uma das línguas nativas do Malawi, país da África Oriental) e que encontrei todas as bases para ser a artista que sou hoje. O mais importante foi a expansão do meu olhar em relação ao continente, enxergar tudo que ele é e oferece para além de estereótipos: musical, intelectual e ancestralmente falando. A África é gigante, e, apesar de me sentir muito realizada por conhecer três países do continente, algo que muitos dos meus não conseguem realizar, sei que não é nem 10% de tudo que a gente pode encontrar e descobrir lá. O mais marcante dessa estadia foi o acolhimento e a conexão que fizeram eu me sentir em casa, que me faz sempre querer voltar e conhecer mais. Foi esse processo de conexão e saudade que me fez iniciar uma pesquisa musical pela música africana e outros ritmos negros após retornar para o Brasil. Dali cheguei ao resultado sonoro e temático que tenho hoje, misturando afropop e afrofuturismo.
Suas influências artísticas vão de Gilberto Gil e Elza Soares a Fela Kuti e Janelle Monáe, passando por Luedji Luna e Liniker. Qual a sua mais remota lembrança musical e quando você decidiu que seguiria esse caminho?
A música sempre fez parte de mim, não consigo me lembrar quando comecei a cantar ou gostar de ouvir música porque acho que é desde que nasci mesmo (risos). Mas, algo que eu sei, é que sempre gostei de ouvir as coisas que ninguém ouvia. Na minha infância, minha mãe tinha um toca-discos antigo e eu já procurava ouvir tudo que aparecia pela minha frente: lambada, Balão Mágico, Al Jarreau, Beth Carvalho. Foi um primeiro período de “pesquisa” musical, dentro do que a gente tinha naquela época. Depois disso, na adolescência, foi um outro período importante porque comecei a me aprofundar mais na música negra, principalmente reggae e rap, mas não só: Stevie Wonder, Natiruts, Los Hermanos, Gilberto Gil. Me aprofundei na música africana após a volta da África do Sul, mesmo período em que iniciei meus estudos na Escola de Música Villa-Lobos, com foco em canto e teoria musical. Lá, eu comecei a perceber que estar no palco me nutria e me fazia bem. Decidi cantar, mas tive que me afastar da música por um tempo, por motivos de trabalho. Anos depois, quando voltei, a convite do meu primeiro produtor e empresário (Roger Fraiha), foi quando decidi que aquele nome que eu havia descoberto na África do Sul, que se chamava “felicidade” era o que eu queria usar para levar a minha música para as pessoas.
E como foi que você chegou ao batismo de “Pretambulando” para esse seu primeiro disco, que conta com a produção de William Magalhães, responsável por trabalhos importantes de Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso, Ed Motta, Daniela Mercury e o premiado “Galanga Livre”, de Rincon Sapiência?
“Pretambulando” é um conceito que eu criei para simbolizar uma experiência individual e também coletiva, que entende que a vida do povo preto é movimento. Iniciada forçadamente pela escravidão, a diáspora negra forma a nossa identidade até hoje, e assim será também com as próximas gerações. Da mesma forma, até os africanos que nunca saíram do continente são atingidos pelos efeitos dessa emigração. Então, “Pretambulando” surgiu quando me vi, uma mulher negra, viajando por vários países em vários continentes do mundo, muitas vezes sem saber exatamente o que procurava, mas entendendo que estar em movimento era uma necessidade. Para cada pessoa negra, “pretambular” pode ter seu significado específico, mas, de uma forma geral, a ancestralidade nos une indiscriminadamente. Um jovem da periferia do Rio de Janeiro e outro da periferia de Luanda podem nunca ter se visto ou se escutado, mas eles desenvolvem sonoridades e estéticas muito similares, com o funk e o kuduro, por exemplo. Uma pessoa negra não precisa sair do lugar para estar “pretambulando”, ela traz isso na pele. Todo esse conceito foi sendo desenvolvido ao longo do tempo. Num primeiro momento, era apenas o nome de uma canção, a primeira que fiz, e que depois foi promovida a nome do álbum. Entendi que tudo que eu compunha naquele momento cabia nesse conceito.
O que te inspira a compor e como é o seu processo? Tem algum método específico?
No começo de tudo, compor parecia um bicho de sete cabeças, mas foi só me permitir que fui conseguindo. Lá em 2016, quando comecei o processo de composição desse álbum, eu não tocava nenhum instrumento e meu método de composição era um tema sobre o qual eu quisesse falar: eu, um gravador e uma caneta. Até hoje, pensar em um tema sempre faz a letra sair de forma mais fluida. Porém, hoje toco teclado e esse conhecimento me dá bastante apoio e liberdade para experimentar outros caminhos de criação.
Como você tem encarado a quarentena e que desafios tem encontrado nesse período?
Estar em quarentena há muito mais do que 40 dias tem sido viver várias experiências ao mesmo tempo. É sobre se sentir super produtiva num dia, mas, no outro, nem tanto. É sobre sentir falta dos amigos e da família, sobre ter que conviver muito mais consigo mesma do que se está acostumada. Mas, no meu caso, posso dizer que foi um período em que pude produzir mais conteúdo para as pessoas que me acompanham nas redes sociais e estabelecer uma conexão maior com elas. Sem a rotina diária de eventos, fica mais simples gravar vídeos cantando, preparar versões, compor. Porém, ao mesmo tempo, existem outros problemas relacionados a rentabilizar esse trabalho. São novos paradigmas que o meio cultural, como um todo, está tendo que repensar para se adaptar a um futuro no qual ainda não há previsão de abertura de teatros e casas de shows.
O que tem achado das posições do governo federal do país, diante de uma pandemia que já matou mais de 40 mil brasileiros?
Do ponto de vista geral, a pandemia trouxe muita instabilidade financeira e emocional, devido às incertezas que a situação pandêmica traz. E, como se já não bastassem todos esses problemas, ainda precisamos lidar com uma instabilidade política que coloca o nosso país em lugar de chacota internacional. O governo federal, que deveria ser o responsável por resguardar a vida das pessoas, se mostra contra o isolamento social desde o começo, ignorando os direcionamentos da OMS (Organização Mundial de Saúde) e de pesquisadores de grandes universidades nacionais, como UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e USP (Universidade de São Paulo), e internacionais, como Oxford (no Reino Unido) e Columbia (nos EUA). Na última vez que vi, o dado era de que morria uma pessoa de Covid-19 a cada minuto nesse país. E, nesse momento, o número provavelmente já é maior. É uma infeliz realidade que aqueles que perdem familiares e amigos devido a essa crise tenham que ouvir “e daí?” como mensagem de consolo para as dores que sentem.
Fotos: Raphael Pizzin/Divulgação.