*por Raphael Vidigal
“Dirás ás vezes que é sorte, porém no mais das vezes foi afano.
Como um furacão que arrasa, deixam no caos da casa a todos zambos.
Sem saber qual foi o gato… e quem pode afirmar não foram ambos?” T. S. Eliot
A vida de Tony Tornado daria um livro. Mas ele mesmo não quer saber de biografia, como já declarou em diversas ocasiões. Aos 90 anos de idade, completados nesta terça (26), o músico, ator e dançarino que sempre foi sinônimo de estilo – atualmente recluso por conta da pandemia do novo coronavírus que já matou 22 mil brasileiros – virou meme da nova geração, que se divertiu com o fato de que Tornado poderá, finalmente, se beneficiar de uma plaquinha exposta em bares de todo o Brasil: “Fiado só para maiores de 90 anos acompanhados pelo pai”.
Em entrevista ao jornal O Globo, no ano passado, Tornado revelou que seu pai “está vivo e lúcido aos 108 anos de idade”. A despeito de nunca ter bebido nem fumado, a trajetória do artista possui fatos tão ou mais impressionantes do que a genética privilegiada. Antes que o seu nome ecoasse em todo o país com o sucesso estrondoso da música “BR-3” (de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar) no V Festival Internacional da Canção, em 1970, o aspirante a cantor, nascido em Mirante do Paranapanema, no interior de São Paulo, foi colega de Silvio Santos no exército brasileiro, participou da batalha do Canal de Suez, no Egito, em 1957, e atuou como traficante de drogas e cafetão em Nova York, nos Estados Unidos, onde viveu ilegalmente na década de 1960 e salvou Tim Maia (1942-1998) de uma cana brava depois de pagar fiança.
Já consagrado como o intérprete que se apresentou ao lado do Trio Ternura e bradou os versos vertiginosos “Há um foguete/ Rasgando o céu, cruzando o espaço/ E um Jesus Cristo feito em aço/ Crucificado outra vez”, enquanto rodopiava feito um tornado, com a camisa aberta e um sol desenhado no peito, o dono de um black power imponente acabou preso por repetir, no palco, a saudação dos Panteras Negras, movimento norte-americano de origem marxista, durante um show de Elis Regina (1945-1982), que acabara de cantar “Black is Beautiful” (de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle), em plena ditadura militar, no ano de 1972. No mesmo período, ele enfrentaria o preconceito racial por seu relacionamento com a atriz Arlete Salles, que durou sete anos.
Na TV e no cinema, Tornado viveria papeis usualmente destinados aos negros, sem conseguir mudar essa realidade, mas dando destaque para suas personagens, como em “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), “Quilombo” (1984), “Roque Santeiro” (1985), “Sinhá Moça” (1986), “Vai Trabalhar, Vagabundo II” (1991), “Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados” (1995), “Redentor” (2004), além de inúmeras pornochanchadas. O trabalho de maior reconhecimento aconteceria com a minissérie “Agosto” (1993), na pele de Gregório Fortunato, guarda-pessoal de Getúlio Vargas.
A longevidade levaria Tornado a marcar mais de uma geração e ganhar um novo séquito de fãs, formado, principalmente, por crianças e adolescentes, graças às participações como Avalanche, em “Caça Talentos”, de 1996 a 1998, protagonizado por Angélica, e na paródia “Os Trapalhões e o Mágico de Oróz” (1984), quando atuou ao lado de Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias. Se, ao longo da carreira artística, Tornado variou entre o humor e o drama, tanto na música quanto na dramaturgia, ele retornou recentemente a investir em uma expressão carrancuda, por vezes até mau humorada, ao aparecer na série “Carcereiros” (2018), da Globo, e dar vazão ao jurado severo de PopStar, que disparou sem rodeios: “Cantar pior que o Chico Buarque é impossível”. E como de hábito, desde que surgiu, provocou o espanto da plateia.
“BR-3” (música soul, 1970) – Antônio Adolfo e Tibério Gaspar
A inclusão da música “BR-3”, um soul de 1970 de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, no rol daquelas que marcaram o período de contestação à ditadura militar no Brasil, está muito mais ligada à postura de seu intérprete do que propriamente à letra. Tony Tornado estourou nos palcos naquele mesmo ano e, acompanhado pelo Trio Ternura, transformou a canção em um símbolo não apenas da música, mas do movimento negro no país. Apresentada no V Festival Internacional da Canção, logo arrebatou o público, que se detinha muito mais na figura imponente e vigorosa de Tony do que em seus atributos como cantor. Expressando-se através das gírias e da dança dos negros norte-americanos, o intérprete estabeleceu um confronto com todos aqueles que insistiam no preconceito e iam contra as liberdades individuais e coletivas. Dois anos depois, ele seria preso pelo regime militar, ao repetir no palco, num show de Elis Regina, a famosa saudação dos Panteras Negras, movimento de origem marxista.
“Podes Crer, Amizade” (música soul, 1972) – Tony Tornado e Major
Tony Tornado foi um estouro para os palcos de todo o país ao invadir a casa das pessoas pela televisão no Festival Internacional da Canção empunhando a música “BR-3” e dançando de maneira eufórica e entusiasmada, com o molejo próprio dos negros. Um ano depois, em 1971, invadiu com o punho em riste a apresentação de Elis Regina, no mesmo festival, para saudá-la pela interpretação da música “Black Is Beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Saiu de lá algemado. Ícone da cultura negra, da resistência, do sucesso e da superação, Tony escreveu sua história na música, nas novelas e no cinema do Brasil. “Podes Crer, Amizade” confirma essa força do Tornado.
Foto: Vinícius Giffoni/Divulgação.