“Não há sentido na nossa miséria; fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido; esforço é vergar as costas e arrastar, não é mérito. (…) Por que é que só é ordem, neste país, a ordem de uma gaveta vazia? E necessidade só existe a de se matar no trabalho?” Brecht
O cenário é a Inglaterra, mas poderia ser aqui, no Brasil, afinal não é de hoje que esse país imita as “tendências” mundiais. Como os grandes artistas, o diretor Ken Loach, 83, só tem um assunto e, no seu caso, trata-se da opressão sistêmica do capitalismo em cima dos mais pobres. Para quem não sabe, esse britânico de Nuneaton, pequena província no norte da Inglaterra, é um marxista de carteirinha.
“Você Não Estava Aqui”, a sua mais recente incursão na telona, denuncia o que se convencionou chamar de “uberização” do trabalho, em referência aos aplicativos de serviço de transporte. Desta vez, a variação sobre o mesmo tema nos coloca diante da família Turner. Até a abertura repete os maneirismos de “Eu, Daniel Blake” (2016), seu filme anterior, que causou estardalhaço ao acompanhar as desventuras do protagonista em busca de um seguro-desemprego e levou a Palma de Ouro, em Cannes, revelando a obra do cineasta octogenário, que começou a filmar em 1964, para uma geração acostumada a assistir Netflix.
No entanto, existem diferenças e particularidades em “Você Não Estava Aqui” – cujo título repete a expressão escrita no cartão que deve ser deixado na casa das pessoas quando elas não podem receber encomendas –, a começar pelo desenho das personagens, bem menos carismáticas que aquelas de “Eu, Daniel Blake”, embora igualmente sofridas.
O patriarca Ricky, vivido por Kris Hitchen, tem por emprego, exatamente, realizar entregas. Ele acredita ser um excelente negócio porque, de uma maneira ou de outra, se vê como sócio do empreendimento. É dono da própria van e seu salário depende da produtividade. Ou seja, nada das malfadadas leis trabalhistas que costumavam reger as relações entre patrão e empregado, marcadas por intermináveis burocracias e sindicatos aproveitadores. A crença do “empregado”, que se vê como “sócio”, nessa “verdade” do patrão a respeito de burocracias e sindicatos é a chave para entender a precarização do trabalho que Loach denuncia com tenacidade, sem deixar de lado as sutilezas que dão à história contornos comoventes e dramáticos.
Os meandros dessa trama capitalista mostram que ela se fia muito mais em argumentos de convencimento do que na possibilidade, prevista em lei, de estabelecer esse tipo de “contrato”. Rick representa uma imensa massa de pessoas que assumiu e encampou o discurso redentor de que a almejada prosperidade nesse macabro jogo da sobrevivência depende, única e exclusivamente, do esforço. É a meritocracia do neoliberalismo. A superação como suprema qualidade.
Ele corre como um tresloucado para atingir metas, trabalha uma média de 12 horas por dia entre segunda e sábado e, ao final, chega em casa de madrugada, exausto, sem tempo nem para jantar com a esposa ou conversar com os filhos, mas tendo a certeza do dever cumprido. “Não suporto preguiça e jamais aceitaria receber um seguro-desemprego, tenho orgulho demais para isso”, chega a dizer em determinada passagem do filme. A fé inabalável nesse sistema só é afetada quando Ricky se vê obrigado a pedir ajuda a um superior na empresa, que ele considerava como “sócio”. É quando as máscaras caem.
A esposa de Rick, Abby, interpretada por Debbie Honeywood, está inserida na mesma lógica. Ela cuida de idosos e deficientes físicos e tem os ganhos atrelados à quantidade de clientes que consegue visitar. Mas, para Abby, o emprego não é, somente, uma forma imprescindível de sustento. Ela se dedica a ele também por amor ao próximo. A atuação rende, ao longa-metragem, sua mais complexa personagem.
Essa rotina desvairada pesa sobre os filhos do casal. Enquanto a pequena Liza (Katie Proctor) ainda idolatra o pai, o adolescente Seb (Rhys Stone) está na fase da rebeldia e contestação, inclusive do status quo capitalista que, como ele bem aponta, se baseia na publicidade. Seb se recusa a ir para a faculdade, onde “deve aprender a convencer as pessoas a quererem aquilo que elas não podem ter”, reclama.
Com habilidade, Loach tensiona essas questões até o limite e explicita o quanto o cidadão comum é levado a aceitar a precarização do próprio trabalho como única saída para suas aflições. Acontece que esse é um beco sem saída.
Raphael Vidigal
Imagens: Julie Ann Horan/Reprodução.