“Deixai-me carpir, crianças/a vossa imensa desdita.
Prendestes as esperanças/numa gaiola maldita.
Do fundo do meu silêncio/eu vos incito a lutardes
contra o Prefixo que vence/os anjos acorrentados
e ir passear pelas tardes/de braço com os namorados.” Vinicius de Moraes
Uma noite em 1962, mais precisamente no dia 21 de novembro, ficou marcada na história da bossa nova, quando grandes nomes do gênero musical se apresentaram no icônico Carnegie Hall, em Nova York. Quase seis décadas depois, algumas coisas mudaram e outras permanecem. Hoje, Wanda Sá, 72; Marcos Valle, 73; Roberto Menescal, 79; Leila Pinheiro, 56; e o grupo vocal MPB4 sobem ao palco do Palácio das Artes, às 21h, para reencenar o histórico concerto.
Na ocasião, Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves e seu quarteto, Sérgio Mendes, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Milton Banana, Sérgio Ricardo, Normando Santos, Agostinho dos Santos, Dom Um Romão, Ana Lúcia, Bola Sete e Carmen Santos, além de Wanda e Menescal, que participam do show desta sexta-feira (9), encararam uma plateia formada preponderantemente por norte-americanos, em que se destacavam músicos do jazz como Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Tony Bennet, Herbie Man e Miles Davis, que afirmou, em 1972: “Só existe a música erudita europeia, a música negra americana e a música popular brasileira”.
01 – Qual a importância e o sentimento de recriar em outras capitais esse show que marcou a história da Bossa Nova no Carnegie Hall?
Leila – Esse primeiro show da bossa nova nos Estados Unidos virou uma lenda. Já ouvi e li tantas histórias sobre aquela noite. Acho importantíssimo manter viva a bossa nova, mostrar para as novas gerações a qualidade inigualável das músicas feitas a partir do final dos anos 50, por compositores genias, muitos deles vivíssimos e intensamente produtivos, como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Marcos Vale entre outros. No primeiro “Bossa in Concert”, em Brasília, cantamos e tocamos para 3 mil pessoas extasiadas, que gostam de música de qualidade e naquela noite ouviram quase 30 canções na voz de 7 diferentes artistas e uma banda maravilhosa. Foi um delírio! Uma noite muito especial que certamente vai se repetir em Belo Horizonte.
02 – Como recebeu o convite para participar dessa celebração e o que ele acrescenta na sua carreira? Já havia se apresentado com os outros músicos antes?
Leila – Fiquei muito feliz com o convite e torço para poder estar em todas as cidades onde o show acontecer. É espetacular poder dividir a música e o palco com queridos amigos e parceiros há tantos anos. Nos divertimos muito sempre, e o que rola nos camarins destes shows grandes é sempre uma farta camaradagem regada por um mar de histórias que daria um livro interessantíssimo. Sou filha da bossa nova, nasci em 60. Gravei 45 músicas da bossa em dois discos que projetaram demais a minha carreira no Brasil e no Japão. Me sinto em casa cantando a bossa.
03 – Como avalia a influência da Bossa Nova sobre a geração atual e porque ela é tão aplaudida no mundo todo?
Leila – Para a grande parte da mídia brasileira a bossa nova é velha, mas para o público não. Os jovens que estudam música, que gostam de música brasileira, tem sempre muito interesse e curiosidade sobre as canções. No Brasil, eu e Roberto Menescal nos apresentamos em casas de shows imensas sempre superlotadas. Viajamos juntos incontáveis vezes para o Japão e nos emocionamos sempre com a receptividade dos japoneses e de gente do mundo todo que frequenta as casas de jazz e teatros onde nos apresentamos. Eles amam os artistas, os compositores, reverenciam a nossa música de forma muito especial. Volto dessas viagens sempre muito renovada, com a sensação de que estive num outro planeta.
04 – Qual a importância de Tom Jobim na sua trajetória em particular e na história da música brasileira?
Leila – Tom Jobim faz muita falta como compositor e como cidadão brasileiro, apaixonado pela natureza e pelo Brasil, país que ele cantou mundo afora e que jamais lhe deu o reconhecimento que merecia. Gênio absoluto e grandiosa inspiração para tudo o que faço na música e na vida. Generoso, me deu música inédita (“Espelho das Águas”) e veio tocar piano no meu primeiro vinil, em 1983, avalizando o começo de carreira de uma então, jovem cantora. Gravamos juntos um pouco antes dele morrer em 94 e na história da música brasileira ele é único, inigualável, eterno, referência máxima para quem faz e estuda a música brasileira com paixão e seriedade. Sinto saudades dele como sinto de pessoas da minha família. Uma pena ele ter ido embora tão cedo.
05 – Além de registrar esse show em CD e DVD, como já adiantou o produtor Omar Marzagão, quais outros projetos você tem em vista?
Leila – Fico muito feliz de saber que gravaremos CD e DVD dos shows “Bossa in Concert”. Que beleza! Sigo uma trilha de resistência e permanência na música brasileira há muitos anos e se a música fosse menos vital para minha sanidade talvez já tivesse me retirado para o meio do mato, com as plantas e os bichos que eu amo tanto. Mas insisto na música brasileira de qualidade, ampliando meu público que se renova a cada ano e dá sentido a tudo o que faço. Convites vários e diversos vão preenchendo minha agenda, meu show novo se chama “Cenas de um Amor” e, sozinha ao piano ou com três grandes músicos, canto e toco a música brasileira (a mais bela música do mundo) há 36 anos.
06 – Como avalia o cenário atual da música brasileira e como as plataformas digitais têm interferido?
Leila – O cenário da música brasileira? Meu Deus! Prefiro não avaliá-lo. As plataformas digitais são ferramentas fantásticas para divulgação e interação com o público. Sou fascinada com a internet, frequento fortemente as redes sociais e há 2 anos vivi uma experiência incrível, propondo um Crowdfunding (Financiamento Coletivo) para gravar meu EP “Por Onde Eu For”. Durante 2 meses, diariamente, eu me comunicava com pessoas de todos os cantos, interessadas no meu trabalho e em participar da campanha que resultou vitoriosa. Me entristece é ver que ainda não encontraram (será?) uma forma de remunerar os compositores, que veem suas músicas e letras sendo baixadas e consumidas, sem receberem nada por isso. Já passou da hora de apresentarem uma solução para isso.
Raphael Vidigal
Fotos: Site Oficial/Divulgação.
Publicada no jornal O Tempo em 09/06/2017.