“Para fazer uma campina
Basta um trevo e uma abelha
Um trevo, uma abelha
E fantasia.
Ou apenas fantasia,
Na falta de abelhas.” Emily Dickinson
De todas as artes, a música é a que menos almeja captar a realidade. Sendo assim, sua natureza é essencialmente abstrata. O “mago” Hermeto Pascoal, 81, é mestre em embaralhar os significados prensados pelo dicionário, como se fossem as letrinhas de uma sopa em fogo alto, onde a condição audível mais preocupada em representar, casos da sonoplastia e da onomatopeia, se misturam a cartas que querem apenas “soar como sílabas”, diria Caetano Veloso.
O bardo baiano, que homenageou Hermeto em duas ocasiões, ao cunhar a expressão “hermetismos pascoais” (na música “Podres Poderes”, 1984) e com “O Estrangeiro”, de 1989 (nos versos “o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”), não é um dos contemplados no disco lançado neste mês de agosto pelo “bruxo”, descrito pelo trompetista Miles Davis (1926-1991) como “gênio”. Entende-se, afinal, num dos “arranca-rabos” mais conhecidos da música mundial, Hermeto chamou Caetano de “musiquinho” quando este elegeu a música norte-americana como a mais importante do século XX em detrimento da brasileira.
Ao louvar Pernambuco, Tom Jobim, Búzios, Sivuca, São Paulo, Edu Lobo e vários outros, ao longo das 18 faixas do álbum duplo “No Mundo dos Sons”, Hermeto não se esquece de tecer loas para Miles Davis, Piazzolla, Ron Carter, Thad Jones e mais amigos de quem foi próximo, tanto do ponto de vista pessoal quanto musical, e o faz, a sua maneira, com um acento brasileiro que só ele é capaz de arrancar dos tantos instrumentos ali descobertos. Do piano ao balde d’água, passando pelo berrante, o músico permanece como típico espécime plural do Brasil.
Fábula. A música de Hermeto não nos deve servir para entender a música, mas, muito além, como compreensão de vida. Em seu caldeirão sonoro, a convergência é a guarida para “fugidos” e “fugitivos”, “mortos e feridos”; todos se salvam diante da extrema disponibilidade do músico em abarcar tudo quanto pulse, pois dali extrai-se som, ritmo que não determina, mas abrange e amplia horizontes.
O artificialismo da produção de Hermeto vai ao encontro de suas origens alagoanas. Então criança, a curiosidade foi sua companheira em lagoas e rios, auge de descobertas regidas pelo encanto. Ainda hoje, a arte de Hermeto, que se revela como própria extensão do corpo, desperta fascínio, espanto e encantamento. E é, sobretudo, exercício de liberdade. Porque nessas indagações infantis que se estendem até os dias atuais deste já octogenário instrumentista e compositor, a noção de naturalismo parece ter dado lugar a uma percepção de que nada está alheio, ao fim e ao cabo, a uma condição inescapável: a da invenção.
O mundo sonoro apresentado por Hermeto e seus companheiros tende para a criação libertária, cuja medida é a superação dela, ante o caráter absurdo que os contos de fadas costumam ganhar. “Rafael Amor Eterno”, feita para o bisneto do músico, é exemplo de rara beleza aliada a domínio técnico. Nesta hora realizamos que a “verdade”, prima-dona do jornalismo, não passa de mera fabulação para adultos.
Raphael Vidigal
Fotos: Gabriel Quintão/Divulgação.