“Que independente disso, eu não passo
De um malandro, de um moleque do Brasil
Que peço e dou esmolas, mas ando e penso
Sempre com mais de um por isso ninguém
Vê minha sacola…” Luiz Galvão & Moraes Moreira
Embora tenha demorado mais do que o esperado pelos fãs – afinal de contas a última reunião do grupo aconteceu no longínquo ano de 1999 e o espetáculo que estava programado para 22h do último sábado começou pouco depois das 23h – o tempo não esgarçou as criações dos “Novos Baianos”, ao contrário, provou que o viço e o frescor da juventude que clamava pelo amor livre ungido na atmosfera hippie que comungava casa, comida e canção permanecem com o vapor ligado a plenos pulmões. Parte do atraso pontual deveu-se à pouca habilidade da casa de espetáculos BH HALL na condução do evento, determinando a abertura dos portões pouco antes do horário marcado – ponto em que pessoas já se aglomeravam nas filas – quando a experiência prova que, se já há quem queira entrar, é de bom costume do anfitrião receber. A outra metade da longa e recompensada espera ocorreu pelo fato de Baby ter, nas últimas décadas, se dedicado exclusivamente ao repertório gospel e a vida religiosa. Por ironia, a ideia ganhou consistência justamente com sua volta aos palcos em 2013, ao comemorar seus 60 anos, e que desembocou em um DVD.
A despeito das conhecidas limitações técnicas do local no tocante ao som, item primordial e nevrálgico de toda e qualquer apresentação musical, a trupe formada por Baby do Brasil, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes e Luiz Galvão – a quem os colegas tiveram a sensibilidade de resguardar momentos especiais para recitar poemas seus, apesar de debilitado pela diabetes – comprovou a tese do escritor Rubem Alves de que a qualidade da comida não depende sempre da condição da panela. O caldo dos “Novos Baianos” ferveu e acalentou aqueles que foram estimulados a participar da cerimônia festiva e festeira a tal ponto que na maioria das vezes o canto do público deixou em segundo plano ruídos e abafamentos de instrumentos e microfones. Cantavam aquelas músicas os que as viveram quando foram criadas e os que as descobriram quando já versavam como clássicos do cancioneiro nacional, gentes de todas as idades, credos e raças que também se uniram em momentos aonde o inicial silêncio era preenchido pelos bramidos que têm tomado ruas, o primeiramente “FORA TEMER”. Teve choro e a toada.
A abertura soube sublinhar o contorno da trajetória dos baianos, ao exibir em telão vídeos de antigamente, minutos antes dos integrantes aportarem no agora, vindos do alto, em carro a simbolizar o período da vida que tiveram em comum, realçando o delicado e exuberante cenário idealizado por Gringo Cardia. O figurino contemplou a habitual e natural irreverência e despojamento dos músicos. Também natural é que em espetáculos de tais proporções a luz seja menos notada, pelo caráter monumental do palco e a distância a que muitos dos espectadores têm de guardar, mas, em episódios-chave, ela deu seu recado. Como na antológica execução de “Brasileirinho” por Baby e Pepeu, ele um monstro na guitarra, ela uma diva na interpretação, na divisão rítmica, no domínio da própria extensão vocal que lhe permitiu brincadeiras com a voz, uma dentre as tantas passagens mágicas do reencontro que evocou, na memória dos mais aficionados, a reportagem sobre quando o antigo casal fora barrado na Disneylândia, pelo exotismo de ambos. Na sequência do arrebatamento Baby saudou a plateia com fervorosa religiosidade. Fé e desejo.
Assim, após passar por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, “A Menina Dança”, “Acabou Chorare”, “Preta Pretinha”, “Brasil Pandeiro”, “Mistério do Planeta”, “Besta É Tu”, “Swing de Campo Grande”, “Cadência do Samba”, “Tinindo Trincando”, Ary Barroso, Assis Valente, João Gilberto, Ataulfo Alves, rock, choro, samba, frevo, toada, baião, e mais uma infinidade de sucessos, exibindo a olhos vistos tanto a excelência instrumental quanto de concepção filosófica e o que mais couber na cabeça e no coração – com interferência direta nas letras – o reencontro dos ainda tão “Novos Baianos” chegou ao fim, não sem antes receber a reverência e saudação entusiasmada de um público, talvez até mais do que isto, um povo, carente de liberdade e sedento por libertação, que compra para si e enxerga-se no discurso libertário que deu certo para cinco pessoas a fim de viver em comunidade, pregando o amor livre e a paz entre os iguais, compondo, tocando e jogando bola. Como pecado maior, provavelmente, o fato da turnê não passar pela Bahia. Pois trata-se do reencontro de um dos grupos mais influentes da história da MPB, oriundo da terra de Jorge Amado e de Caymmi. Novo como nunca, baiano como sempre…
*Já há a confirmação de que a turnê se estenderá até 2017 com previsão para lançamento de CD e DVD. Antes de iniciá-la, o grupo se apresentou em maio na reabertura da Concha Acústica, na Bahia.
Raphael Vidigal
Fotos: Dario Zalis; e Manuela Scarpa, respectivamente.