A Noite Da Revolta

“se eu estiver em fugas e
uma língua de vulcão
extrair de meus ossos
minhas carnes eu vos rogo
jamais preencham minha
carcaça com gesso ou com
outras substâncias
moldáveis

Jamais, vos suplico
aprisionem meu medo
num rosto apavorado de
estátua.” Simone Teodoro

"Ronda Noturna", obra de Rembrandt

A senhora é um buldogue. Ora morde: outra ladra. Tem aromas clandestinos da planta de almíscar. O enxoval bravio da seriema grávida. Pisa nas superfícies traiçoeiras, móveis e crepitantes. Os jeans amortalhados brilham pela agulha que lhes fere o âmago. Flores de plástico sobem ao alto por ventiladores que destinam voo aos incapazes. A falta de pano para a calça resolve-se com o excesso da saia. Inexistem asas e os papelões debatem-se: os instrumentos de madeira velha, as poesias de palavra reciclada, as agonias de antigas almas, as esperanças de verde lápis, as mentiras de quem diz a verdade. As novas e as idosas, as de cabelos brancos e as de ainda ralos, os desdentados por motivos vários. Tremulam como as bandeiras das ruínas gregas. Uma overdose de açúcar, um decomposto estado, um vazio existencial, um corpo, um cosmos: a Via Láctea. Mais do que é possível dar: entorna o leite, derruba o líquido. Apesar das desavenças, leve senhora.

Tenta desgrudar a sangrenta perna, no entanto os urubus já estão de olho. Cachorro louco, cão do demônio, como uma procissão as formigas seguem a cigarra. Na trilha do Louva-Deus lidera o padre: Homero colérico, enervado. A bata cor de berinjela queima no sol intransigente e áspero, que não respeita nem os mais velhos. De mãos dadas deflagram o iminente: quando se está numa panela fervendo, na água borbulhando, numa cadeira bamba: o milímetro que separa o acontecimento do fardo. Talham as vestes e escapulários, os terços e cintos diários, com a dureza da mão do engenheiro. A arquitetura, a abominável ferida nas costas da Santa, passa despercebida, ou se quiseram que passe. A panela ferve: fagulha o asfalto. Homero conclama os fiéis – a mão lotada de anéis – e o padre, Deus do céu, é o retrato do medo que se transforma em ódio, como pode? Assim reage o pai ao ver ante os filhos a ameaça. Estão chegando aos poucos ao refúgio.

A cobra encontrará os esquilos. E os esquilos só têm uma chance: a de atacarem juntos, morderem em conjunto o chocalho da cobra. Mas o esquilo é único. O esquilo está só, está único. Está esquálido. O esquilo tem medo das patas. O padre tem medo dos ares. A formiga tem medo da cigarra. E cada um absorve o teu improvável: o contrário de cada um: é o pior inimigo dos outros: o contrário de cada um: é o mesmo que se disfarçou: a força de uma maldade: a dispendiosa ingratidão: o cantil, cantilena, rojão. A guerra toma conta das ruas. Camisas pintadas em guaxe: rútilas e instáveis. Ágata é a única, e solitária. Deita a cabeça em ti, a imagem da Pietà, o Cristo adormecido. Estou morto? Ressuscito. Escravaturas são rompidas ao ranger dos dentes. O terreno é da discórdia e bulimia: vomita tudo o que comeu: cadavérica Santa Maria.

"Leão deitado", desenho de Rembrandt

Raphael Vidigal

Pinturas: Obras de Rembrandt.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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