“Mais: que ao se saber da terra/não só na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas/fortes, terrenas, maciças,
mas se orgulha de ser terra/e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dança,/para vencer quem duvida.” João Cabral de Melo Neto
Quando chegou ao Brasil, no início da década de 1960, trazido pelo produtor e diretor Carlos Machado para compor a coreografia de “Elas Atacam Pelo Telefone”, o ítalo-americano Lennie Dale, nascido Leonardo La Ponzina na periferia de Nova York; já desfrutara de relativo sucesso na terra natal. Era uma promessa cujo gênio ameaçava, desde cedo, as estruturas vigentes. Integrante do musical da Broadway “Amor, Sublime Amor”, foi barrado pelo diretor Jerome Robbins para a versão cinematográfica. Não deu outra, sem pensar duas vezes carregou as malas cheias de collant e brilho para Londres e passou a ensaiar em uma sala alugada com as portas abertas a fim de exibir seu rebolado.
Daí foi um pulo para participar de programa na televisão italiana com a presença do astro da dança e das telonas Gene Kelly e, logo em seguida, da coreografia do filme “Cleópatra”, protagonizado por ninguém menos que Elizabeth Taylor, de quem se tornou amigo e guardou histórias saborosas para contar entre os mais próximos. Anos depois, também encantou Liza Minelli, e a dirigiu em espetáculos. Tudo isso antes de desembarcar em terras brasilis. O que lhe deu mais do que a cancha necessária para fomentar o estilo de dança da bossa nova, e influenciá-la até no jeito de cantar. Ao registrar dois discos valia-se de estribilhos rítmicos e sonoros para compensar a ausência de voz.
Foi nessa brincadeira que conheceu Elis Regina e sugeriu a coreografia das “mãos em hélice” na música “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, que garantiu à cantora o prêmio do Festival da Música Popular Brasileira daquele ano, e passou a ser figurinha carimbada e fácil entre os diversos bambas do “Beco das Garrafas”, como Jorge Benjor, Sérgio Mendes, Baden Powell, Luiz Carlos Miele e Nelson Motta, e os mocinhos e mocinhas dos apartamentos na zona sul carioca que se reuniam para executar o estilo estruturado por João Gilberto. Essa facilidade de transição e a diversidade provavelmente formam a principal característica da verve artística de Lennie Dale.
Ao juntar o sagrado e o profano, o erudito e o popular, se bem que pecasse muito mais pelo excesso, pela extravagância, e quase nunca pelo recato e o comedimento, inclusive em suas incursões no universo da bossa nova, o músico e dançarino foi capaz de levar, com clareza e singularidade, e, no entanto, movido por um profundo senso de disciplina, técnica e rigidez teórica fundamentais à dança, a ética da liberdade, do sonho e da esperança. O principal exemplo da síntese desses fatores talvez tenha sido sua participação no performático grupo “Dzi Croquettes”, que ele comandou, a partir de 1972, com mãos de veludo, mas no tino de seu cavalo.
E que, ao exalar deboche e sátira com seu teatro de escândalos, trouxe vários sopros de alegria e provocação, e, sobretudo, abriu cabeças para o mundo de possibilidades a ser explorado. O intenso período de atividade foi seguido de perto por uma perseguição tão sombria quanto insistente dos artífices da ditadura militar no Brasil, e o grupo se desfez dois anos depois, em 1974. Tempo suficiente para excursionarem pela Europa e serem aclamados em países como Portugal, Itália e França. Sem abrir mão das alternativas, Lennie escolheu, na medida do possível, tê-las todas. Como em sua dança, lânguida na inflexão dos joelhos, leve na tensão de sua sexualidade.
Raphael Vidigal
Fotos: Arquivo e Divulgação.