Tentações da Carne

“Pode-se resistir a tudo, menos a uma tentação.” Oscar Wilde

artemisia-gentileschi

Para ela a página em branco era como uma maçã madura, lisa, com a casca vermelha ainda intacta, esperando a primeira mordida. No que olhava para a maçã já imaginava o buraco que seus dentes cravados fariam naquela carne de fruta. Essas associações explicam, em alguma medida, a sua tentação por padres. Tinha essa preferência, à imagem dum homem de batina vinha-lhe a página em branco, a maçã madura, a mordida. Seus suores logo escorriam alcançando as regiões mais profundas do corpo e da alma. Nesse quesito, não se fazia de rogada, de jeito nenhum, rezava a missa toda. Primeiro, era preciso se aproximar do padre, com um jeito meigo e arrependido que caracteriza toda e qualquer carola, independente da idade, depois, era necessário mostrar para a vítima o perigo que ela corria, e amordaçá-la.

Os padres são aqueles que pelo Eclesiastes, pelas tradições, o que consta nas Bíblias e nas mais diversas religiões, reivindicam-se proclamadores da “Palavra do Senhor”, portanto calar esta voz não é fácil. Embora poucos ouçam a voz de Deus muitos escutam aos padres. A pureza que representa um padre é justamente por ser ele a personificação do enigma, da ausência, do nada, do invisível que circunda o humano deste que veio ao mundo. Portanto, torna-se mais fácil entender as tentações daquela que via, no domínio desta figura, o contato com o divino, com o milagre, como se tocasse em Deus. As tuas provocações não eram simples divertimentos irresponsáveis, a tentação que sentia ante a figura de um padre tocava-lhe suas mais recônditas camadas. Se o maior elogio que se pode fazer sobre a existência humana no mundo palpável é mistério e prazer, ela era santa, quase.

Das tentações da carne, portanto, ela se via justificada, inclusive com uma leitura religiosa, mística, mágica, tudo que a poesia tem em contato com os anjos e fadas. Calhou de aparecer na cidade, porém, um padre sem nenhum calor, sem nenhum mistério, um padre sem asas, um padre humano, assim, reles e miserável, um padre de carne. Ela não quisera tocar aquelas carnes, e agora se culpava. Ela já havia conquistado todos os padres que passaram pela cidade, lhes tirado as culpas e exigido as mais sonoras confissões de amor, e agora se via diante de um padre áspero, sem a imanente presença celestial que recobria os outros padres como uma maçã madura, a página em branco a ser desbravada. Este padre, um dia, se aproximou dela, e quis saber por que não o tentava. Ela respondeu singela, com os seios flutuantes num decote baixo e o colo a ser apalpado: “É que sou santa, resisto aos pecados”. No que o padre, na manhã seguinte, deixou a cidade.

giorgione

Raphael Vidigal

Pinturas: “Susanna e os anciãos”, de Artemisia Gentileschi; e “Vênus adormecida”, de Giorgione, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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