“Este verso, apenas um arabesco
em torno do elemento essencial – inatingível.
Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas,
e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento, (…)
feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arabesco, apenas um arabesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.” Carlos Drummond de Andrade
Se há uma fábula que diz que Deus distribuiu as artes em categorias e presenteou cada uma com uma função sensorial, não é menos verdade que Lygia Clark foi uma pioneira, no Brasil, ao explicitar que para as artes plásticas coubera o tato. Natural de Belo Horizonte, Lygia causou impacto, primeiro, ao extrapolar os limites da moldura, para em seguida propor que se entrasse em contato com o objeto, resultado da experiência humana, de maneira entregue e larga. Lygia foi a antítese do artista “isolado”, em seus paradoxos e problemas elementares, ao contrário, reuniu as linhas da vida e arte numa só, sem medo de expor e convidar seus pares a compartilharem os mistérios da intimidade.
Sua influência em vários campos, portanto, parece natural. Além de adentrar ela própria o universo da terapia, Lygia serviu de inspiração a escritores, cineastas, dramaturgos, músicos e outros artistas plásticos. Experimentava-se no período uma ebulição cultural típica do momento de modernização do país. Movimentos como o Neoconcretismo e a body art passaram por Clark. Outro escritor mineiro, natural de Formiga, se viu embebido pelas propostas de Lygia. Ao escrever seu romance “Stella Manhatan”, Silviano Santiago criou personagens que se desdobravam em gêneros, como as esculturas “Bichos” da artista, que recusava esse rótulo e preferia ser chamada de “propositora”.
A obra mais conhecida de Lygia Clark, inclusive, exibe um bom panorama de suas pretensões. Ao convidar as pessoas a participarem e modificarem um gesto iniciado por ela, Lygia não apenas rompe as estruturas tradicionais do campo específico em que trabalha como, para os mais atenciosos, indica uma necessidade de possibilidades a que a sociedade e suas leis rígidas vai, paulatinamente, tornando impalpáveis, distantes, com o uso de ferramentas que mais do que a violência implicam em constrangimento, algo bem mais sutil, como a vergonha, a moral e o medo. Na experiência do toque, do contato, da materialidade, do tato, não está vedada a ninguém a chance de uma libertação.
Raphael Vidigal
Imagens: foto da artista; e um exemplar de suas esculturas “Bichos”, respectivamente.