“O corpo era uma gaiola e, dentro dela, uma coisa qualquer olhava, escutava, tinha medo, pensava e se espantava; essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma.” Milan Kundera
Um dia, colocaram o artista em sua gaiola. A gaiola, portanto, era a forma, e o artista, o conteúdo. Ele que sumira aos poucos na capa invisível da Literatura agora podia ser visto dentro da gaiola. Quem o colocara ali, ninguém sabia, mas isso pouco importava. O imprescindível era ver o artista dentro da gaiola. A gaiola tinha uma forma de pelagem, e o artista, pelugem. A gaiola apresentava certa falta de acabamento, mas o artista, apesar de carente de massa, era interminável, ininterrupto. O humor da gaiola era vário. Ás vezes chamava de ânsia, outras de ânimo, mas a maior parte das vezes era uma animosidade. Já o artista vivia em estado de espírito, em estado bruto.
Com o passar do tempo, alguns observadores perceberam, e esses eram ourives, é bom que se aponte; que dentro dos olhos do artista havia ouro. Não era um ouro comum, era um ouro como uma súbita gargalhada, outros associaram este ouro a uma flor de laranja, e o professor de gramática o definiu sem igual através da palavra “letargia”. Havia uma condição no ouro dentro do olho do artista da gaiola. Era uma condição animalesca, é verdade, daquelas querendo rimar cousa com louça, um certo tom Portugal que fazia troça com certas bobeiras e parodiava canções, caso daquela em que se diz d’essa “estranha mania de ter fé na vida”. Passado esse prólogo vamos falar do artista em sua gaiola. Ele vivia em estado de espírito, em estado bruto, com uma mola no olho.
Essa mola pareceu para alguns desatentos observadores, ourives em especial, se tratar de ouro. O ouro no olho do artista tinha uma condição animalesca. Após outro tempo, soltaram o artista da gaiola, mas desta vez ele se enganchara numa cortina de veludo: era o artista no Nascedouro. Com aquela mola no olho o artista transformou a gaiola em ouro, e o veludo num olho. Assim, um filete do artista se despregou tanto da gaiola quanto da cortina de veludo, e ele pôde, a partir deste momento, praticar um natural esquecimento das coisas. Fora da gaiola o artista era uma forma, e seu passado, era um conteúdo. Imberbe e com a garganta seca, passou a engolir dragões, mentiras, lavadas salivas, para matar a fome. Ao final desta matança louca percebera uma púrpura purpurina pura & pútrida em seu estômago. Enferma e dilacerante a purpurina o designou “Porra-Louca”.
Com este termo bem apropriado para um artista fora da gaiola, passou a acumular luzes, era praticamente um imberbe conteúdo abalroado por exuberantes formas. Certa feita sentou-se para conversar com Hélio Oiticica e Glauber Rocha, mas desvencilhou-se de ambos quando uma lança erma, truculenta e lerda os sacudiu, nos arredores de uma península Ibérica. Transitória. Estéril. Alterada. Logo, disposta de rotas, colisões, aliás, clandestinas eram essas colisões do artista e sua gaiola. Por fim, ele que pinta, ele que dança, ele que borda e elabora. Ele esculhamba ele que embrulha. Ele que engole e ele debulha. Ele é um pulha. Ele é um bolha. Ou uma bílis. Ele que escorre. Ele que estraga. Sacode. Não é o fim coisíssima nenhuma.
No latifúndio com as pernas esticadas percebe a imensidão histriônica e nativa de sua forma. Ou é de seu conteúdo. Há fendas e macerado, grande é a sua fome. Do artista e sua gaiola. Portanto ele lavra, e acredita piamente na produção de esgares. Na produção da beleza. O artista e sua gaiola têm olhos verdes, o que se confundiu lá atrás com ouro ou mola era uma vedete. O artista tem uma palavra, enfiada goela abaixo dessa vedete rotunda: única, indissolúvel como água tônica, benta, gasosa. Aos poucos se revela (à revelia) um calhorda. Sujeito canalha. Uma promissora cólera. Um arrivismo derradeiro.
O artista vive na gaiola em plena forma.
Raphael Vidigal
Imagens: pintura do armênio Arshile Gorky; e foto do artista plástico brasileiro Hélio Oiticica, respectivamente.