“A gente pensa numa coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa…e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.” Mario Quintana
É de um intelectual a constatação de que o amplo entendimento do duplo sentido no Brasil remonta ao período da escravidão. Em outros países essa cultura não seria tão difundida. De acordo com a tese se vivia naquela época sob uma realidade de mentira, em que a hipocrisia era dominante e as pessoas, escravos preponderantemente, tinham que recorrer a artimanhas para se comunicar e expressar com seus companheiros. Já que não podiam falar abertamente, a exclusão da liberdade lhes foi o mote para criar o “duplo sentido”. Como muitas contribuições da cultura negra no país, o duplo sentido se estendeu para as artes, com especial alcance na música, principalmente a nordestina. Se o nome do intelectual se esqueceu, o sentido duplo permanece.
Eu dei… (marchinha de carnaval, 1937) – Ary Barroso
Talvez tenha sido a marchinha de carnaval a iniciar a malícia do duplo sentido na cultura musical com acento tipicamente brasileiro. O que muito se explica em razão da conotação da festança, que tem nos deuses do vinho e do prazer, como Dionísio, todo o seu efeito e sentido. “Eu dei…” composta por Ary Barroso e lançada por Carmen Miranda em 1937 já brincava com a relação sexual entre a expressão e as múltiplas possibilidades que ela desperta no imaginário. O desejo de cada um é que define o que foi afinal que deu Carmen, afinal ela não revela, e “adivinhe se é capaz…”.
Severina Xique-Xique (forró, 1975) – Genival Lacerda e João Gonçalves
Genival Lacerda é um dos ícones da música de duplo sentido no Brasil. Natural de Campina Grande, na Paraíba, criou um estilo caricatural, pautado nas vestes espalhafatosas e na famosa dança ‘sensual’ em que põe a mão na barriga, influenciando nomes da região que também fizeram sucesso no Brasil, como Reginaldo Rossi e principalmente o cantor Falcão. Em 1975, esse gênero musical que sempre esteve ligado às camadas mais populares, viu nascer o forró “Severina Xique-Xique”, de Genival e João Gonçalves. Com uma letra mais óbvia do que na época das marchinhas, mas ainda ambígua, não se precisa de muito para imaginar o que é a butique da protagonista… “E ele tá de olho/É na butique dela…”.
Rock das ‘Aranha’ (rock, 1980) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
Em 1980 o baiano Raul Seixas, que sempre gostou de mesclar o rock a ritmos brasileiros e idolatrava tanto Elvis Presley quanto Luiz Gonzaga, também entrou na onda do duplo sentido, bem à sua maneira. Criou com o parceiro Cláudio Roberto a história da cobra que observa a briga de duas aranhas, numa óbvia alusão aos apelidos dados aos órgãos sexuais no Brasil. E como era de costume fazia troça de qualquer movimento que se insurgia pretensiosamente, no caso, alas mais radicais do feminismo. A relação lésbica é observada por Raul com curiosidade e desejo, ansioso por participar dessa festança da natureza. “Vem cá mulher, deixa de manha/Minha cobra quer comer sua aranha…”.
Panela Velha (sertanejo, 1983) – Moraezinho e Auri Silvestre
Sérgio Reis começou a carreira cantando rock na Jovem Guarda, e teve êxito com a música “Coração de Papel”, de sua autoria, mas fez mesmo sucesso foi como cantor sertanejo. Em 1983, já com uma longa estrada percorrida, lançou a canção da dupla Moraezinho e Auri Silvestre, “Panela Velha”. O sucesso foi tão grande que mesmo quem não a conhece, se é que isso ainda é possível, é capaz de cantar o refrão, que impregnou-se como ditado na nossa cultura. O duplo sentido faz referência ao elogio que o protagonista dirige à mulher amada, com o uso de outra gíria muito típica da nossa cultura. Afinal de contas, “não interessa se ela é coroa/panela velha é que faz comida boa…”. Entenda como quiser.
Prenda o Tadeu (folclore, 1985) – Clemilda e Antônio Sima
Duas personagens importantes e carismáticas estão ligadas à música “Prenda o Tadeu”. Clemilda (que divide a autoria com Antônio Sima) e Maria Alcina, intérprete que a popularizou para o Brasil inteiro. As duas a gravaram no mesmo ano, em 1985. Com interpretações que variam entre a irreverência e o ritmo mais tradicional do forró, ambas sublinham o duplo sentido da canção, na história característica do folclore da região, em que uma moça perde a virgindade para um tal garanhão, no caso, o temido Tadeu. Claro que a preocupação da família, e especialmente das irmãs, é nítida. “Prenda o Tadeu” é parte dum imaginário riquíssimo da cultura de duplo sentido nordestina, que conta ainda com nomes de peso como Anastácia, que também abasteceu o repertório de Maria Alcina, e Sandro Becker, além de obras de domínio público como “É mais embaixo” e “Calor na Bacurinha”, todas cantadas pela mineira de Cataguases que lançou Fio Maravilha no Festival da Canção de 1972. “Seu delegado/Prenda o Tadeu/Ele pegou a minha irmã e/Oh!…”.
Tem coca aí na geladeira (samba, 2000) – Regina do Bezerra
Bezerra da Silva praticamente não assina nenhuma das composições que tornou célebres no Brasil inteiro. O estilo particular e característico é tão próprio que soa limitado classificar como “samba”, afinal de contas Bezerra da Silva canta num outro ritmo, melhor entendido como “Bezerra da Silva”. Muitos dos autores dessas músicas, inclusive, não tinham os nomes divulgados, mas sim, codinomes, por serem procurados pela polícia pelos mais diferentes motivos e transgressões da ordem. Logo, não é de se espantar que como os escravos, das quais a maioria descende, eles utilizem de uma linguagem própria, codificada, para tratar de temas como violência e uso de entorpecentes proibidos pelo Estado. “Tem coca aí na geladeira”, registrada como de Regina do Bezerra, esposa do cantor, faz uma óbvia brincadeira com o produto amplamente aceito e propagandeado pelo império norte-americano que soa como aquele outro, proibido e perseguido pelos mesmos barões da situação. Afinal de contas, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. É dose!
Raphael Vidigal