“Seguiu-se um silêncio que circulou pelo quarto como um pássaro encurralado.” Truman Capote
Ondas de ressentimento o encontravam pronto ao choque. Nutria-se lentamente. Como o beija-flor que vinha a beijar a água colocada para ele nos reservadores da casa. Rapidamente encostava o bico, pegava o suprimento, arfava vôo.
Depois tornava, o reservatório à espreita, esperando. Para lhe dar sempre mais um gole do liquido que mantém o plano no ar. Galhofa. Arrepia-se. Sucede às asas. Era acusado dum humor permanente. Com a cabeça encostada em anzóis invisíveis, avistavam-no encurvado, soçobrando fundos, atrás de peixes, com minhocas nos lábios.
Ironia era ofensa permitida. Desde que não servisse à mesa exposto o sentido valioso do que se mostrava. Numa bandeja lapidada a prata, o momento solene de abri-la era adiado. Reservando para gerações futuras, o ódio tácito que aos poucos carcomia os calcanhares pilares daquela família arruinada.
Um velho sentado balança cadeira na varanda. Desertor da própria imagem. Sonhos surrados de vômito e farpo. Quando jovem, jurara ser escritor. Pena que a força o desintegrou. Lápide velha, últimas palavras: ‘Posso não ser reconhecido, mas saberei a vida inteira o que sou’.
“Como todo artista maior, (…) não dá certezas, permanece ambíguo, aberto.” Luiz Arthur Nunes. Lera ainda jovem essas palavras, num ensaio sobre teatro a respeito de contista que muito lhe era caro. Caio Fernando Abreu, não sabiam se era mago, ilusionista, ou escritor amador. Amante. Tal Dom Quixote de Cervantes, era este o apelido de Caio, dado por ninguém menos que a maga Clarice Lispector, ele também se sentia apto a enfrentar os moinhos de vento, retornar cansado para a casa, derrotado, na derrocada.
Fora isto o que fizera. Os mesmos movimentos. Incumbido da mesma serenidade consoladora que reporta os pretensos escritores a lugar de destaque nas prateleiras alcovas encardidas em encruzilhadas inimagináveis.
Com ele, nada acontecera além do contrário. A vida toda relegada a plano de fundo, banhava-se em ondas de ressentimento infindo. Furto, a exemplo do mercador dos filmes que tem a jóia roubada. Via-se parte duma cena de Alladin, em que os ladrões quebram-lhe os pertences, belíssimos vasos de cerâmica, barro, ignorando sua agonia sacudida apenas pelo rabo solidário dum cachorro malhado.
Detestava-se dando palavra. Desterrara-se. Percebera, quase enfermo. Claridade agora é desterro. Com a cabeça apenas do lado de fora, tentando respirar a qualquer custo, fôlego sôfrego que falta. Tão falta falta falta. Nada ‘presenceia’.
Caneta, distante. Um esforço imenso para uma recompensa estúpida. Eu não tenho total controle sobre o que escrevo ou falo. Não tenho total controle, sobre o quê escrevo. Não tenho, total controle, sobre o quescrevo. Subscrevo. Enlameado nesse jogo de palavras: ou falo falo falo Freud calo. Esse tom de pouca vergonha. Reprimido. Subestimado. Não trocaria conhecimento nenhum no mundo pelo carinho do pai. O beijo ao entardecer da mãe. O brilho tolo no riso escancarado da irmã que aprendeu a adorar.
Meu sono pesa mais que o texto. Que estou escrevendo. Por isso não agrada. Nem aos críticos muito ao público em geral também não. Confuso. Mecânico. Maquinado.
Parrudo: o beija-flor de barriga inchada, alimentado com goles d’água: Um amplo ressentimento em sua posição de ataque-defesa. As garras? Os bicos? As asas cortadas? A Gaiola? Não. Sua arma era a satisfação de enxergar os outros pássaros afogando-se.
Submetera-se a ser chicote na mão de outros. Ele que por inteiro ricocheteava por pro vocação. Sinal vermelho. Nasce o bigode afeito a sangue, carnificina da última geração.
‘O Herdeiro de Clarice’, dizia-se. Mas da inspiração quase provável restara apenas prova de que um dia fora filho. Já distante de nossos narizes, olheiras enrugadas, nobre retrato dum velho com destino trágico. Aterrador. Pois o tempo se encarregou de guardá-lo nas paredes insolentes, ao lento debruçar da memória que a todos, sem distinção, maltrata.
Tenho feito esperar, só. Cloro nos poros, pêlos, lágrimas, sentimentos. Sentencio: a vida. Rabiscou uma única mágoa, sem ressentimento, sofrida fresca burca fugaz infinda.
‘Não existe satisfação, há alívio.’
Raphael Vidigal
Pinturas: “Auto-retrato com colar de espinhos” e “Eu e meus papagaios”, respectivamente, de Frida Kahlo.
6 Comentários
Oi Rapha, esse é um bom assunto, sem dúvida vou compartilhar. grande abç……….. 🙂
Sou fã da Frida!
O quadro de Frida e marcante! Vou ler e compartilhar! Sucesso!
q isso hem, ta bem.
c tem vocaçao para compor musica
Muito obrigada Raphael Vidigal, divulgando … VIVA!
Rapha Raphael Vidigal, acabo de ver tudo sobre seu RESSENTIMENTO, obrigada por “seus escritos” . Imagens e palavras preciosas.Um grande presente. Continue assim……….SUCESSO!!