Elza Soares: Voz Que Toma Corpo

 

*por Raphael Vidigal

“noviça apaixonada aos vinte anos, puta de salão aos quarenta, rainha da Babilônia aos setenta, santa aos cem. Cantávamos duetos de amor de Puccini, boleros de Agustín Lara, tangos de Carlos Gardel, e comprovávamos uma vez mais que aqueles que não cantam não podem nem imaginar o que é a felicidade de cantar.” Gabriel García Márquez

Você já ouviu a voz que toma corpo? Da favela vem magra, faminta, intacta e assim permanece. Carrega a cabeça uma lata d’água e nas mãos uma prece, que se estende aos quadris da mulata assanhada, sobe pelas paredes. E alcança no céu um Ary Barroso e um Louis Armstrong. É a mistura sem jeito, sem tato, aos barrancos, mancando ao sapato um tamanco de barro, suor e pilão. Chame de bossa negra, suingue, jazz, funk ou samba na avenida. Ela apenas destila o que chama de corpo é a voz que arrepia: Elza Soares da vida, patrimônio mal resolvido num país de descidas, sucata e música aborígene.

Se Acaso Você Chegasse (samba, 1938) – Lupicínio Rodrigues e F. Martins
Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se acaso você chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estréia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e amizade posta sob perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo.

Fez Bobagem (samba, 1942) – Assis Valente
Um mês depois do lançamento de “Brasil Pandeiro”, Assis Valente atirou-se do Corcovado e ficou preso em uma árvore, o que salvou sua vida do suicídio. Naquele mesmo ano, em janeiro, havia nascido sua única filha, Nara, fruto do casamento com Nadyle da Silva, 15 anos mais nova. O casamento não durou muito tempo, ao contrário da relação com a filha, que teve o nome tatuado no corpo do pai, na época considerada uma subversão. Os desentendimentos amorosos foram mais uma vez retratados em música por Assis, no ano de 1942, em samba intitulado “Fez bobagem”, lançado por Aracy de Almeida. A letra escancarava o desacordo de um enciumado triângulo amoroso, e recebeu versões de Elza Soares, Teresa Cristina e Caetano Veloso. A dor trazida por Assis era dedilhada em versos: “dá vontade de chorar, e de morrer”.

Mulata Assanhada (samba, 1956) – Ataulfo Alves
Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão. Regravada em 1960, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornou-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”.

Estatutos de Gafieira (samba, 1954) – Billy Blanco
A menina Elza da Conceição Soares, casou-se, obrigada pelo pai aos 12 anos de idade, com um menino de 17. Mãe aos 13, viúva aos 18 anos, viu a vida precoce deslizar no asfalto. Soube manter a pose e equilibrar-se no morro, apreciada em sua imaturidade pelos “Estatutos da Gafieira”. Retirando deles a melodia para superar as adversidades, Elza Soares, já nascida cantora e desde sempre acalentada por seu canto rompedor, regravou em 1966 o samba dançante e esguio de Billy Blanco, conferindo-lhe sua pulsação singular. Como diz a biografia da cantora lançada em 1997, escrita por José Louzeiro, é Elza “cantando para não enlouquecer”.

Antonico (samba, 1950) – Ismael Silva
Composto em 1950 por Ismael Silva, o samba “Antonico” foi registrado por ele próprio em disco em 1973, fruto do espetáculo “Se você jurar”, dirigido por Ricardo Cravo Albin. Em 1967, Elza Soares já o havia gravado no disco “Elza, Miltinho e Samba”, em que cantava algumas músicas ao lado do cantor Miltinho. Apesar das constantes negativas de Ismael, especula-se que a música seja autobiográfica, devido às dificuldades financeiras que o compositor passou após sair da prisão. Em uma carta escrita por Pixinguinha em 1939, endereçada ao musicólogo Mozart de Araújo, ele dizia: “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.” Quase os mesmos versos presentes no samba “Antonico”.

Salve a Mocidade (samba de carnaval, 1975) – Luiz Reis
Elza Soares sempre puxou pela força do canto as barreiras que tentaram derrubá-la. Cantou o samba de carnaval de Luiz Reis, escrito em 1975, exaltando a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas também o que existe de “mais quente”, o povo e sua festa, sendo ela mesma, o carnaval na essência, superando toda quarta-feira que foi cinza em sua vida. Ansiando a folia.

Edmundo – versão de In The Mood (samba, 1954) – Aloysio de Oliveira
Aloysio de Oliveira aproveitou-se de uma interpretação vocal para transformar o sucesso americano de Glen Miller, composto por Joe Garland e Andy Razaf, In The Mood, no sucesso brasileiro de proporção internacional, “Edmundo”, em que se vale das trapalhadas de seu protagonista. Lançada por seu “Bando da Lua” em companhia de Carmen Miranda em 1954, a música recebeu regravação de Elza Soares e entrou para a galeria de estouros de seu repertório. Sem perder o requebrado e o bom humor, Elza mantém a forma ao interpretar diversas mancadas e peripécias no universo musical em que ressoa a vida.

Devagar Com a Louça (samba, 1963) – Haroldo Barbosa e Luiz Reis
Elza Soares viveu um tórrido romance com Mané Garrincha que lhe valeu muita tristeza e também muita felicidade. O filho do casal, Garrinchinha, morreu em acidente automobilístico em 1986, abalando muito a cantora, que já havia perdido filho para a fome. No entanto, Elza soube superar as agruras que lhe foram impostas, e “devagar com a louça”, recuperou seu terreno. A voz acoplada à melodia que lhe é impregnada pelo timbre aguçado e intransferível marca a releitura da cantora no samba composto em 1963 por Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Devagar com a louça que eu conheço a moça vai devagar…”.

Boato (samba, 1961) – João Roberto Kelly
O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961 de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta triste os infortúnios sombrios do ilusionismo.

Volta Por Cima (samba, 1962) – Paulo Vanzolini
“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu-se Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique o que fazer com a música que este havia ganhado, e que por briga com a gravadora, não poderia gravá-la. Foi então que “Volta por cima” encontrou Noite Ilustrada, e por três semanas consecutivas angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962. Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”, cantada com emoção ímpar por Elza Soares: “Chorei, não procurei esconder, todos viram, fingiram, pena de mim não precisava, ali onde eu chorei qualquer um chorava, dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava.” Para ele, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso ‘reconhece a queda’.

Beija-me (samba, 1943) – Roberto Martins e Mário Rossi
A pitada de jazz acrescentada por Elza Soares ao samba que pratica garante a autenticidade sonora de seus retumbantes graves, agudos e tudo mais que endossa sua voz inigualável. Sejam rasgadas as interpretações, ou disfarçadas sob a fantasia de um macio véu, a música espalha-se em Elza Soares ao deleite de desvios maternos, femininos, vorazes. “Beija-me”, samba de 1943 de autoria de Roberto Martins e Mário Rossi, sucesso de Ciro Monteiro, é um convite irrecusável, feito pela cantora do milênio, segundo a BBC de Londres. Gravado por Elza Soares em 1961. “Beija-me, deixa o teu rosto coladinho ao meu…”.

Língua (rap, 1984) – Caetano Veloso
Houve quem quisesse destruir Elza Soares (policiais covardes, jornais sensacionalistas), sem perceber que estímulos sonoros são inquebrantáveis. Qual então a força do canto que remete aos primórdios do haver humano, e mais ainda, bulido à margem do trompete de metal que se ergue aos ombros de quem sassarica sem vergonha de querer ser feliz. Tudo através da música que rege a vida. A onda sonora que abate oportunistas desventurados no caminho da rainha de argila, feita de água e terra, com a verdade que compreende conquistas. Por isso a “Língua” de Elza Soares soa tão afiada e cortante como lâmina para quem a quiser corrompê-la de hipocrisia. Aos prazeres modestos, sem a imoralidade insólita, ela se derrete, sem medo. E junta sua língua à de Caetano Veloso, em 1984, rap esperto e afinado. Um ano depois, gravou disco produzido por Caetano e Lobão.

Malandro (samba, 1976) – Jorge Aragão e Jotabê
A música de Elza Soares, tal qual a perfeita expressão da personalidade, combina rítmica, harmonia, melodia e letras bem trabalhadas, embelezadas por seu canto instigante e bardo, nas mais altas prateleiras da atemporalidade. “Malandro”, samba de 1976, foi lançado por Elza juntamente com o compositor Jorge Aragão, que divide a autoria da música com Jotabê. Os versos relatam um aviso de que o amor representa perigo. Mas vale o risco, tão bem ritmados pela cantora.

O Mundo Encantado de Monteiro Lobato (samba-enredo, 1967) – Batista da Mangueira, Darcy da Mangueira, Luiz, Dico, Jurandir e Hélio Turco
Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. A relutância em ser precoce não infringiu à Elza a fuga de seu destino. Tudo lhe veio cedo, lhe foi cedo, muito permaneceu. Por exemplo, o canto, a vontade, a luta cotidiana contra o infortúnio, a certeza da alegria. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida!

Dor de Cotovelo (samba-canção, 2002) – Caetano Veloso
No renovador álbum na carreira discográfica de Elza Soares, “Do cóccix até o pescoço”, lançado em 2002, a cantora gravou um samba-canção magnífico de Caetano Veloso, em que ressalta com toda sua voz vitimada por carinhos e torturas as malícias de um relacionamento complicado, tardio, enfim, desfeito por artimanha do ciúme. “O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés…”.

Bambino (tango-brasileiro, 1913) – Ernesto Nazareth
Ernesto Nazareth começou a ter problemas de audição quando caiu de uma árvore, ainda criança. Desde então, eles passaram a acompanhá-lo tal qual o piano. Diagnosticado com sífilis em estado avançado e já praticamente surdo, teve que ser internado na colônia Juliano Moreira, dedicada a pessoas com certo grau de loucura. Não foram raras as vezes em que fugiu e foi encontrado tocando compulsivamente um piano. Até que não mais voltou e faleceu nas águas de uma represa, dizem, em posição de criar mais uma das obras clássicas brasileiras, a exemplo de “Bambino”, o tango brasileiro que recebeu em 1913 letra de Catulo da PaixãoCearense, e mais recentemente, no ano de 2002, novos versos de José Miguel Wisnik, e a interpretação arrebatadora de Elza Soares.

Palmas no Portão (samba, 1967) – Valter Dionísio e D’Acri Luiz
Em 1967 Elza Soares iniciou parceria com o cantor Miltinho que acabou por render três antológicos discos, combinando o suingue da cantora e a apurada noção rítmica do colega. Mais tarde, em 1972, bancou parceria com o iniciante Roberto Ribeiro, o que provaria seu certeiro faro para descobrir talentos. Mas é de 1967 a composição “Palmas no portão”, de Valter Dionísio e D’Acri Luiz. Nela, Elza abusa no samba com o privilégio de sua voz sinuosa, e reclama de saudade: “Ôôôôô há mais de uma semana que eu não vejo meu amor…”.

Sei Lá Mangueira (1968) – Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho
Até hoje há fanáticos que não perdoam o fato de Paulinho da Viola, portelense de coração, ter criado a melodia para uma das canções mais emblemáticas em saudação à Mangueira, muito embora ele tenha feito, em seguida, “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida” para a Portela. Hermínio Bello de Carvalho escreveu a letra de “Sei Lá Mangueira” logo após a sua primeira visita ao morro, inebriado com o que havia visto na companhia de Cartola e Carlos Cachaça. Lançada por Elizeth Cardoso em 1968, a música foi inscrita no IV Festival de Música Brasileira da Record, quando foi defendida por Elza Soares.

Pranto Livre (samba-canção, 1974) – Eduardo da Viola e Dida
“d’O pranto que é privilégio de quem sabe amar”. Elza ama, amou, amará. Essa é sua sina. Que perpassa aos berros melodiosos, ritmados, harmônicos de uma voz que exulta infinita a beleza que há em cantar, cantar, cantar… ouvir Elza Soares. “Pranto Livre”, samba-canção de 1974, de Eduardo da Viole e Dida, liberta a melancolia para que sobre ela se aviste a dor, apinhada de busca da felicidade.

Oração de Duas Raças (samba, 1980) – Gérson Alves
Interpretada por Elza Soares no álbum “Negra Elza, Elza Negra”, em 1980, o samba de Gérson Alves, à época casado com a cantora, não menciona o nome de Nelson Mandela, mas faz referência óbvia às lições do mestre, com um discurso de igualdade entre negros e brancos no qual afirma: “Aqui somos todos iguais/ E quando acontece uma guerra/ Morre o negro e morre o branco/ Chora toda a humanidade/ Sem saber a cor do pranto/ A mente fica confusa/ A guerra é um desespero e não se escolhe pela cor/ Gente pra morrer primeiro”. A própria Elza Soares dedicou a canção ao líder sul-africano quando foi anunciada a morte de Nelson Mandela.

Flores Horizontais (MPB, 2000) – Oswald de Andrade e Zé Miguel Wisnik
Este poema escrito por Oswald de Andrade, um dos principais nomes do modernismo brasileiro, e da “Semana de Arte Moderna de 1922”, foi resgatado por Zé Miguel Wisnik, que colocou melodia na letra para que ela pudesse ser interpretada magistralmente por Elza Soares no ano 2000, quando lançou o revigorante álbum “Do Cóccix até o Pescoço”. Como Oswald morreu em 1954, aos 64 anos, a poesia data de muito antes, o que evidencia não só a presença de prostitutas entre a sociedade e os intelectuais brasileiros como a preocupação afetiva e sentimental para com elas. Mais do que uma indignação social o que a interpretação de Elza Soares comprova é a profunda admiração que Oswald nutria por essas mulheres batalhadoras e cheias de coragem, “flores brancas de papel, flores da vida”.

Maria da Vila Matilde (MPB, 2015) – Douglas Germano
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da nonagenária intérprete, nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, cheia de modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza Soares. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres e é um símbolo de perseverança. Para a qual não existe idade, credo, gênero ou raça. É simplesmente um ato de liberdade. A música ganhou uma versão do bloco feminista Sagrada Profana.

“Se não fosse cantora, seria prostituta” Elza Soares

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Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 26/06/2011.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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