“Oh cidade dos ciganos!
Quem te viu e não te lembra?
Cidade de dor e almíscar,
com as torres de canela.” García Lorca
A chama estendia-se involuntária. A chama era uma mulher aflita, e acuada. Por sobre as palhas a mortalha envolvia-os em Terror e Desespero. Os primeiros, ungidos pelo cascalho anil da Salvação, traziam os violões. Bem atrás, distinguidas somente após forçar-se a vista contra o sol, surgiriam, sob mantos negros do luto; mulheres despidas de suas vestes, levadas em meio às rajadas de fogo e as labaredas da ostentação. Crianças agarravam-se afobadas às mãos, não se importando se referentes a tias, mães ou avós.
As pequenas criaturinhas, quase migalhas oferecidas aos abutres que por Fome e Esperança aproximavam-se mexendo com hostilidade as asas, trataram de apressar os passos, e com isso foram soltando pouco a pouco as pedras, indiferentes ao fogo e presas ao solo. Como as senhoras lhes puxassem orelhas, por desrespeito ímpar a Deus e ao Natural, rapidamente treparam nas castanheiras e juraram virar, naquela noite, refeição para abutre. Não existiu alma viva a ignorar petulante pirraça.
No que tentaram dissuadir as crianças do ato foi que ocorreu a enxurrada. Desta feita não havia o mormaço a impregnar o clima e levar parentes ao fechar-lhes a garganta, nem a lógica cíclica do planeta a varrer o passado e recriá-lo em forma indefinível aos homens. Os raios, embora vermelhos e quentes, espalhavam o riso frouxo naqueles rostos cansados, mitigados, em farelos. As mulheres abandonaram o luto dos véus, e nuas em pelo puseram-se a dançar na relva verde.
Os abutres dispersaram-se, na busca de comida podre, pois ali naquele ambiente florescia, contra a doença e os males, com certa arrogância cigana, judia, mourisca e árabe, a Vida. Pombos confusos vieram ter com a farra, e beliscaram em sinal de alegria e bagunça os rostos esmigalhados de mulheres, homens, crianças. Não tardou para os provocadores meninos descerem das árvores, e delas trazerem consigo certa noção de Magia, além de madeiras nos dedos, roçando-se, e do atrito emitindo sons.
Da copa das mais altas árvores começou a molhar-lhes os corpos, morenos e magros, uma chuva a precipitar-se morna, e a enobrecê-los, mansa. Despontaram do bico do seio das moças botões de rosa, logo colocadas sobre os cabelos negros e volumosos. Das pernas feridas dos homens emergiram leques e cordas. Os primeiros, jogados ao vento, ajeitaram-se em colos livres e maternais, e as seguintes trataram de servir de lição às crianças, ensinando-lhes a tocar guitarra.
Dançamos todos, naquela noite, o flamenco, a luta, a caça, e essa história, que é até hoje recriada, de geração em geração, tornou-se artigo de luxo.
Raphael Vidigal
Pintura: “Flamenco III”, de Fabián Pérez.
6 Comentários
Mui guapo!!
Que legal!!!
Que beleza! Que dia vc vem me ver cantar?
Belíssima crônica poética postada pelo Raphael Vidigal (que ainda não conheci pessoalmente) sobre o flamenco.
Leiam, hermanos de mi alma. ?
Muito intenso… e muito bonito! Parabéns Raphael y gracias Carol 🙂
A arte brota nas linhas e entrelinhas desse texto maravilhoso do Raphael Vidigal! Olé com olé y olé! ?
Maravilhoso!