“Les mots font l’amour” André Breton
Não sei ao certo, mas me parece que nenhuma poetisa tocou tanto no verso ‘alma’ quanto Florbela Espanca. Com a varinha musical, baliza da poesia, recorrente feitio da portuguesa. Também em seu sobrenome “Alma” estava presente. Foi em um concerto dedicado às canções do maestro e compositor austríaco Gustav Mahler, que Olivia Hime rabiscou as primeiras linhas do que se tornaria “Almamúsica”, música que dá nome ao primeiro trabalho dividido com o marido, Francis Hime.
Após o lançamento do formato em estúdio, o álbum chega à versão ao vivo, em CD e DVD, pela Biscoito Fino. No repertório, autores como Dorival Caymmi, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Tom Jobim. Mas o surpreendente é a declaração, entre espanto e conformação, de Olivia, ao deparar-se com indagação de amiga: “Você lembra qual era o nome da mulher de Mahler?”, “Sim”, ela responde: “Alma”.
SONS & SILÊNCIO
O DVD é dividido em duas partes. A primeira, “Sons & Silêncio”, ambientada na casa de Itaipava, interior do Rio de Janeiro, antigo reduto da dupla que, entre iogurtes e maritacas, compôs, ao piano, violão e voz, clássicos do cancioneiro nacional.
O momento mais divertido é quando Francis Hime improvisa momento do título “Carnavais (Para Coro Misto e Orquestra)”, parceria com o poeta Geraldo Carneiro, que, durante a ditadura militar o levou a ser confundido com um defensor do regime, em razão da abordagem irônica. “As pessoas não o cumprimentavam na rua, prática comum por aqui. Depois descobrimos que era porque ele ensaiava a música, e cantava cheio de energia ‘democracia é o cacete, é o cacete, é o cacete'”, conta, às gargalhadas, a esposa Olivia.
ANJOS DE GESSO
Outra passagem memorável é o casal relembrando a participação da filha, Maria Hime, na época com 9 anos, na gravação da música “Lua de Cetim”, letra de Olivia e melodia de Francis. Além de saborosíssima, é pontuada com a espontaneidade da menina, que debatendo-se contra as cócegas do pai imita os sons de um trovão. “Bruuum, bruuuum, bruuuum”!
As imagens captadas por Wiland Pinsdorf, diretor do mini documentário que antecede o show, são, de fato, belíssimas. Closes em folhas caindo e anjos de gesso poderiam soar monótonas ou batidas, no entanto, casam perfeitamente com o discurso assentido.
ESSÊNCIA
Por outro lado, há, logo início, tentativa de transmitir naturalidade em diálogos previamente ensaiados, e poses de reflexão dispensáveis. Mas a força da música de Olivia e Francis Hime é tão soberana que logo nos envolvemos por acordes, notas e versos que eximem conotações cinematográficas. A essência é musical, e isto basta.
Quando começa o show propriamente dito, em parte intitulada “Almamúsica”, com direção simples e precisa de Flavio Marinho, figurino e cenário singelo a contemplarem a cena, Francis e Olivia passeiam elegantemente pelo que há de melhor da música popular brasileira mais afeita à harmonia.
OUSADIA
E o que pode parecer impensado, acontece. Ambos transmitem ousadia. As abordagens nunca roçam o óbvio, pois para as suítes arquitetadas por Francis Hime, há “Tristão e Isolda”, de Wagner, fazendo a abertura para “À Flor da Pele”, de Chico Buarque, e “Smile”, de Charlie Chaplin, une-se a “Desde Que O Samba É Samba”, de Caetano Veloso.
Exemplo raro desta união entre humor latente e emoção itinerante é a “Canção de Pedroca”, parceria de Francis e Chico Buarque, a melhor, dentre as melhores, do disco, quando Olivia e o marido dedicam-se a cantarolar canções francesas inebriantes. E a referida música parodia o casamento entre o Rio de Janeiro e Paris!
Francis Hime, que pouca gente associa a clássicos de Chico Buarque, como “Trocando em Miúdos” e “Vai Passar”, presentes no disco, merece ouvidos atentos. Olivia Hime, que cresce quando interpreta, vigorosamente, “Paciência”, de Lenine, com a força do piano crescente do acompanhante, é dama, discreta e bem recolhida, da canção. Tua alma floresce na cena, como escrevera, em 1919, Florbela Espanca: “Tens nos olhos o Outono/Nos lábios a Primavera”.
Raphael Vidigal
Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 24/12/2012.
6 Comentários
hum… quero ouvir. Adoro os dois. Olívia foi uma das profissionais que mais me impressionou no início da minha carreira, ao vê-la no Cabaré Mineiro. Primorosa. As francesas me chamaram atenção. Obrigada, Raphael. Sempre bom ler você.
Oi, Raphael, obrigada pela lembrança. Além da admiração enorme que tenho pelos dois, tenho um carinho muito especial pelo Francis! Eu e Ângela Evans tivemos a honra e alegria de participarmos de um show dele no Teatro Manuel Franzen de Lima, em Nova Lima, na ocasião da inauguração do novo piano do teatro. Cantei com ele “A Grande Ausente”, dele e Ângela cantou “Atrás da Porta”, dele e do Chico. Foi um dos momentos mais emocionantes da nossa carreira! Sem contar que foi muito divertido! Ele é uma pessoa maravilhosa, super alto astral! Nos recebeu com enorme carinho. Me lembro que ele brincava dizendo que era a primeira vez que ele era chamado para inaugurar um piano… rsrs Sou muito grata ao Toninho Camargos, pois foi ele quem teve a ideia de propor nossa participação. Aliás, foi na gestão dele, como coordenador do Teatro, que o espaço foi todo restaurado, via Lei de Incentivo. Um dos melhores teatros do interior de Minas! Beijos
parabéns pelo seu trabalho, é gratificante observar que existem jornalistas que se importam com a nossa música.
Isto é Brasil, muito lindo!
Bom trabalho Raphael Vidigal!!!Vlw
Vou ler, depois te conto!