90 anos de Dolores Duran, a avançadíssima cantora e compositora

*por Rodrigo Faour (biógrafo, jornalista, pesquisador e produtor musical)

“Ah, você está vendo só
Do jeito que eu fiquei e que tudo ficou
Uma tristeza tão grande
Nas coisas mais simples que você tocou” Dolores Duran

A grande intérprete do cancioneiro brasileiro e internacional; a artista da Rádio Nacional; a grande cantora da noite – das boates Vogue, Béguine (do Hotel Glória) e Little Club, no Beco das Garrafas; a mulher à frente do tempo – que teve vários namorados, não deixava ser passada para trás; que casou e separou-se; a mulher politizada que foi filiada ao PCB, depois deixou de sê-lo após uma visita à União Soviética; sempre em busca de um sentido para a vida, foi da umbanda (chegou a casar-se lá), depois se converteu ao catolicismo; a mulher “prendada”, que pintava, bordava e cozinhava – tudo muito bem; a figura humana ajudava a família e os amigos; a intelectual, que vivia no meio dos maiores nomes da cultura de seu tempo, conversando de igual para a igual, num ambiente um tanto masculino, diga-se; a poliglota que desde pequena aprendia línguas lendo gramáticas; a moleca, que adorava contar piadas e era sempre franca e espirituosa; a mulher de coração fraco, que teve o primeiro infarto aos 25 anos e não teve saúde para viver muito mais e, finalmente, a grande compositora e poeta, pela qual nos lembramos dela até hoje. DOLORES DURAN partiu aos 29 anos e ainda hoje poderia estar viva, neste domingo, dia 7, faria 90 anos… Tenho muita honra de ser seu biógrafo. Segue um programa que fiz sobre ela para lembrarmos esta data.

*por Raphael Vidigal

“Um prodígio, um gênio, dessas personalidades difíceis de explicar”. Essas adjetivações são usadas com recorrência por Rodrigo Faour, autor da biografia de Dolores Duran (“A Noite e as Canções de uma Mulher Fascinante”; editora Record; 558 páginas; R$49,90), para salientá-la, e acrescenta: “Ela tinha um bom gosto impressionante, detestava cafonices”. Esse bom gosto pode ser atestado através das parcerias que a cantora e compositora, morta aos 29 anos em virtude de uma parada cardíaca, empreendeu ao longo da carreira. Faour destaca, com propriedade, (ele produziu, em 2010, uma caixa com todos os álbuns de carreira da intérprete), as uniões musicais com Tom Jobim, Carlos Lyra e Billy Blanco, que foi também namorado de Dolores.

Vanguarda. Vinicius de Moraes, embora não tenha escrito nenhuma canção com a biografada, aparece como grande amigo e companheiro de “noitadas”. O espírito de vanguarda, aliás, era outra marca da autora de sucessos como “A Noite do Meu Bem”, “Por Causa de Você” e “O Negócio é Amar”. “Foi uma mulher independente, que namorou com quem quis, trabalhou com o que gostava, e curtiu intensamente a noite, isso na década de 50”, revela Faour. As contribuições de Dolores para a música brasileira não se restringem à poesia das letras e a sofisticação melódica. Segundo o autor do livro, “ela criou um gênero bastante coloquial e feminino de cantar o amor”.

O discurso confessional das que a sucederam pode ser percebido nas obras de Joyce, Fátima Guedes, Marina Lima, Angela Ro Ro e Paula Toller, para ficar só em algumas. Como parâmetro de comparação, Faour recorre a um homem, da década de 1930, e que cantou o samba com a mesma efemeridade e pertinência da dama do samba-canção. “Noel Rosa (morto aos 26 anos de tuberculose) é um dos compositores mais regravados da velha guarda até hoje, e Dolores é a mulher mais regravada da nossa história”. Essa descoberta foi, de acordo com o escritor, a mais surpreendente do livro, mesmo para quem, como ele, já está “calejado no assunto”.

Autodidata. Mulher. Mulata. Estudou só até a quinta série. Vinha de origem humilde e nascera no último ano da década de 1920. As probabilidades jogavam contra a menina Adiléia Silva da Rocha, que, antes de morrer, pouco depois da chegada, em 1959, colecionou sucessos e foi boa vendedora de discos durante a vida. Autodidata em cinco idiomas, além de possuir um português perfeito, a garota adotou o nome artístico de Dolores Duran, alcunha cabível à estrela que viria a ser, e registrou músicas em italiano, alemão, espanhol, francês, inglês e esperanto no álbum “Dolores Viaja”. Os primeiros sucessos vieram no bojo de canções caipiras, muitas delas compostas por Chico Anysio, registradas no álbum “Esse Norte é Minha Sorte”.

Autor do best-seller “História Sexual da MPB”, que virou programa de rádio e TV, exibido pelo Canal Brasil, Faour considera haver “uma insuportável onda cool na MPB mais moderninha”. Além disso, ao contrário de Dolores, versátil e detentora de um jeito próprio de interpretar, “há muitos cantores imitando uns aos outros e um complexo de americano-soul-gospel pavoroso entre os mais jovens”, dispara. Essas seriam as razões para a inexistência de clássicos, “daqueles cantados por todas as classes, de norte a sul”, no atual cenário, e que, em outras épocas, eram abundantes. No entanto, as previsões do entrevistado não são totalmente pessimistas, ele garante que os bons artistas da nova geração existem, mas é preciso “paciência para entrar em 1.800 blogs e garimpar com cuidado”.

9 sucessos inesquecíveis de Dolores Duran

Canção da Volta (samba-canção, 1955) – Antônio Maria e Ismael Neto
Dolores Duran e Antônio Maria foram amigos de mesa de bar, copo e coração. Dois geniais e apaixonados compositores homenageados no especial ‘Brasileiro Profissão Esperança’, dirigido por Paulo Fontes e estrelado por Paulo Gracindo e Clara Nunes. Pelas semelhanças de que partilhavam, tanto em vida quanto em obra, tiveram as canções costuradas num misto de irreverência e alarde. Alarde de um coração partido. Pois faziam pouco barulho ao abrir o baú que guardava o maculado e desgastado presente sentimental. No entanto, era um barulho intuitivo e intenso, e por isso mesmo, natural e sincero. ‘Canção da volta’, samba-canção escrito em 1955 com Ismael Neto foi lançada por Dolores Duran, na interpretação que entendeu melhor todos os tesouros descobertos no mar de Antônio Maria. Dolores navega com propriedade de causa e casa.

Pano Legal (samba, 1956) – Billy Blanco
Billy Blanco e Dolores Duran foram namorados. A relação conjugal durou seis meses, mas a da música ficou para a eternidade. Os dois se conheceram na noite carioca, na boemia que tanto os encantava. Por essa feita, uniram lápis, voz e os lábios. Dolores foi uma das cantoras que mais e melhor interpretou Billy Blanco, tanto nas festivas canções sobre gafieira e boate que faziam troça dos tipos falsos, quanto nas românticas que precederiam a bossa nova. Em 1956, “Pano Legal”, uma das primeiras, fez enorme sucesso no rádio. A música, com aquela aparente simplicidade que costumava acompanhar Billy Blanco, trazia uma crítica feroz à elite carioca e a tentativa de abafar a cultura local da camada mais pobre da sociedade. Dolores contorna como ninguém todas as ironias da canção e finaliza: “Se eu soubesse também, como era o ambiente, decente/Jogava um pano legal, por cima de mim…”.

Estatuto de Boite (samba, 1957) – Billy Blanco
Billy Blanco pode ser comparado àquele jogador de futebol que todos conhecem o drible, mas ainda assim, caem. Afinal de contas é impossível não cair no balanço de “Estatuto de Boite”, também lançado por Dolores Duran em 1957. A canção traça um perfeito retrato do ambiente e das confusões que ali acontecem. Além da ressaca no dia seguinte, das brigas entre amigos por causa de mulheres e da moral vigente naqueles tempos, o que emerge de mais este samba de Billy Blanco é a capacidade para captar um momento que revela muito do cotidiano e da vida de cidadãos comuns, com sentimentos e atitudes tão característicos e universais que permanecem frescos na atualidade. Outro fato curioso captado por Blanco é a maneira estrangeirada com que se falava “boate” na época.

Por Causa de Você (samba-canção, 1957) – Dolores Duran e Tom Jobim
“Por causa de você” é a mulher sussurrando ao ouvido de seu amado que ele retorne. É a mulher sussurrando ao ouvido de seu amor que ele nunca mais vá embora, nunca mais deixe murchar as flores da janela que sorriem e cantam somente por causa dele. É a mulher que sem seu homem é só tristeza, amargura, mesmo nas coisas simples que ele tocou. Nas coisas simples que seu coração guardou com carinho e dedicação. É a mulher pedindo a seu homem que ele fique, mostrando que sem ele, ela não existe. A mulher que pede ao amor que ele não fale, não lembre, não chore. Apenas ame. Apenas a ame. O apelo da mulher que só quer ser amada.

Castigo (samba-canção, 1958) – Dolores Duran
Dolores Duran derramou com sua poesia feminina todas as lágrimas que caíam de sua alma sofrida de mulher. Derramou o amor que cai e nem sempre reúne forças para se levantar. Aquele amor que se arrepende de não ter sabido amar, de ter se protegido do outro sem perceber que fugia de si, que o outro e ele eram apenas um, que o amor une as diferenças e as transforma em um único e grande sentimento, que chora, magoa e vá embora. E depois quer voltar. O amor castiga porque quer sempre voltar. E você não tem escolha se não aceitá-lo, pois ele baterá em sua porta até que ela se abra. Dolores Duran apela ao tempo que ele volte, para que ela conserte os erros do passado. Lançada pelo cantor Roberto Luna, a música foi regravada com primor por Maysa.

Viva Meu Samba (samba, 1958) – Billy Blanco
“Viva meu Samba”, lançado em 1958 por Silvio Caldas, transformou-se no que se pode chamar de hino do gênero. Com acompanhamento do maestro Radamés Gnattali, o próprio autor, Billy Blanco, regravaria a música posteriormente. Entre as diversas regravações destacam-se também as de Jair Rodrigues, Dolores Duran e Roberto Ribeiro. A música trata em seus versos de exaltar o ritmo através dos seus instrumentos, como uma ode aos violões, tamborins, pandeiros e reco-recos que foram capazes, através do tempo, de eleger o samba como a mais genuína forma de expressão do povo brasileiro, suas origens e esperanças. “Viva meu samba verdadeiro/Porque tem teleco…”.

Camelô (samba, 1959) – Billy Blanco
O ano de 1959 marca o auge da carreira do paraense Billy Blanco, consolidado no Rio de Janeiro, mas que também homenagearia São Paulo com a ‘Sinfonia Paulistana’, outra de enorme sucesso. No entanto ele não largava o olhar da camada que o interessava na sociedade, o trabalhador comum, operário, simples, nunca lembrado para homenagear ruas e avenidas, mas sempre chamado quando da construção das cidades. “Camelô”, outro de seus sambas lançado por Dolores Duran, traz à tona este personagem tão comum nas grandes cidades, que decide se virar por conta própria com os meios que dispõe. “Ele é vesgo/Pois a profissão ensina/A ter um olho na esquina/E outro olho no freguês”, retrata Billy com todo seu suingue e humor.

A Banca do Distinto (samba, 1959) – Billy Blanco
“A banca do distinto” possui uma das histórias mais comentadas da música brasileira, afinal trata-se de episódio verídico. Dolores Duran se apresentava numa boate, e todas as noites um sujeito engomado que se recusava a ficar de frente para o palco a tratava por ‘neguinha’, exigindo que outros garçons fizessem o pedido da música que queria ouvir, afinal não se comunicava com pessoas da cor negra e se recusava a segurar embrulhos, exigindo que o mesmo garçom levasse o seu sanduíche até o carro. A resposta para o preconceito e a ignorância veio na forma de música, com a inteligência de Billy Blanco, que era definitivo: “O enfarte lhe pega, doutor/E acaba essa banca/A vaidade é assim, põe o bobo no alto/E retira a escada/Mas fica por perto esperando sentada/Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão/Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal/Todo mundo é igual quando a vida termina/Com terra em cima e na horizontal”. Certo é que Billy Blanco, Dolores Duran e a música permanecem.

A Noite do Meu Bem (samba-canção, 1959) – Dolores Duran
Dolores Duran, a cantora da noite do seu bem que viajou na “Aza do Vento” em busca da “Estrada do Sol”. Dos 10 aos 29 anos, cantou todas as línguas do amor. O amor magoado. O amor triste. O amor que nunca desiste. Todas as línguas da dor. A dor do filho que não nasceu. Do final feliz que não aconteceu. Do amor eterno, que morreu. Dolores Duran é a primeira estrela que vier. A rosa mais linda que houver. É a voz dos corações abatidos e mal tratados. Sonhadores e apaixonados. Com sua voz sussurrada e triste, Dolores Duran representa as dores que duram mais que os sonhos e as canções. A voz que sussurra ao coração seu desespero contido.

Fotos: Arquivo Pessoal/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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