40 anos sem Eleanor Powell, ‘Rainha do Sapateado’ que largou a carreira

*por Raphael Vidigal

“Meu trono é lá no azul, como esfinge ignorada;
A um coração de neve alio do cisne a alvura
Odeio o deslocar que os traços desfigura,
E nunca choro e nunca sorrio por nada.” Baudelaire

Há uma foto de Eleanor Powell (1912-1982) em que ela está de perfil, os cabelos ondulados nas pontas visíveis que escapam da touca sobre a cabeça, com um pesado casaco de peles, o nariz levemente arrebitado e a boca fechada, séria, como se ela quisesse, propositadamente, ignorar quem a espia por meio das lentes fotográficas. Parece uma esfinge: fria e enigmática.

Noutra imagem, a dançarina que abalou Hollywood olha diretamente para a câmera fotográfica com um sorriso esplendoroso, os cabelos esvoaçantes, olhos cheios de vivacidade e uma boca aberta contornada por um batom que realça as qualidades das maçãs do rosto, saudáveis e com uma modesta e expressiva covinha que a tornam uma autêntica estrela americana.

Qual das duas imagens é mais real? Qual delas revela mais a alma de Eleanor Powell? Isso vai depender do ponto em que se situa o espectador. Nascida em Massachusetts, na populosa cidade de Springfield, em 21 de novembro de 1912, Eleanor Powell demonstrou, desde a infância, duas características que a marcaram: a timidez e o talento para a dança. Assim, para vencer a primeira, foi matriculada em um curso sobre a segunda e logo despertou reações.

Estreia. Em pouco tempo, foi considerada um prodígio, e levada para o teatro de variedades com apenas onze anos. Não demorou muito para que a Broadway arregalasse seus olhos famintos sobre a menina. Com dezessete anos, ela já tinha que lidar com a luz intensa dos holofotes sobre si. Depois de participar como corista em filmes hollywoodianos, ela obteve um papel de destaque no musical “Os Escândalos de George White”, em 1935, ao lado de Alice Faye e James Dunn. Eleanor descreveu a experiência como “um desastre”.

Mas o barulho provocado por sua presença na tela acendeu a intuição do mandachuva da MGM, L. B. Mayer, que a cortejou para ser contratada pelo estúdio. Desapontada com a experiência cinematográfica, Eleanor recusou. A insistência agressiva de Mayer a levou a usar uma estratégia ousada. Exigiu um salário que ela tinha certeza ser impossível de pagar. Mayer aceitou a proposta e Eleanor passou a ser parte do plantel de astros da MGM.

Auge. Como parte do processo industrial, o estúdio começou a moldar a sua aparência e postura, em busca de um padrão consagrado por Marilyn Monroe (1926-1962). Apesar de incomodada, Eleanor estreou pela MGM em “Nascida para Dançar”, de 1936, e, como não cantava, foi dublada por Marjorie Lane. O filme foi bem-recebido pelo público, o que alçou a protagonista à condição de “Rainha do Sapateado”. O título, no entanto, incomodou um dos grandes ases do gênero.

Eleanor Powell era uma dançarina capaz de roubar a cena de Fred Astaire (1899-1987), como ele mesmo admitiu em uma entrevista na década de 1940. “Eu amo a Eleanor Powell, mas ela dança como um homem. Ela é uma dançarina notável, mas tem um estilo próprio e é um pouco grande para mim”, declarou, esbanjando o machismo em voga na época. A dupla protagonizou a sequência que é considerada o melhor número musical de todos os tempos, em “Melodia da Broadway de 1940”. Eleanor sapateia com graça e elegância, em seu estilo único de menina acanhada, plena de uma feminilidade guardada.

Abandono. Paulatinamente, o mundo artificial das celebridades foi cansando a beleza contida de Eleanor Powell, que não queria perder suas energias naquela máquina de sugar gente. Rompeu o contrato com a MGM com a mesma fleuma com que dispensava os paparicos de Clark Gable, Robert Taylor, Jimmy Stewart e Al Jolson. Seu casamento com o ator Glenn Ford durou dezesseis anos e terminou quando ela descobriu uma traição. Com Ford, teve seu único filho. O matrimônio foi a desculpa definitiva e perfeita pra abandonar os palcos.

Ainda assim, Eleanor continuou dançando, em participações pontuais como no filme “Meu Coração Tem Dono”, de 1950. Passou a dedicar-se à maternidade e expressou a paixão pelas crianças com um programa só para elas, transmitido aos domingos de manhã, pelo qual recebeu um prêmio Emmy. Cada vez mais religiosa, tornou-se ministra da igreja que frequentava. Também produziu um minidocumentário intitulado “Tenhamos Fé em Nossas Crianças”.

Em 1982, Eleanor faleceu, aos 69 anos, vítima de um câncer no ovário diagnosticado no ano anterior. Na ocasião, havia sido procurada para escrever uma autobiografia, mas disse que não teria nada de interessante a dizer sobre uma vida comum, dedicada à família, longe de casos picantes e do oba-oba das recepções festivas, regadas a álcool e outras drogas. Na primeira foto de Eleanor Powell, ela parece uma menina tímida. Na segunda, uma dançarina.

Fotos: MGM/Arquivo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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