*por Raphael Vidigal
“Eu passo as minhas horas a brincar com palavras.
Brinco de carnaval.
Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara.
Faço o que posso.” Manoel de Barros
Gravado por Elis Regina, Elza Soares, Cauby Peixoto, Ademilde Fonseca, Angela Maria, Emílio Santiago, Dalva de Oliveira e Agnaldo Timóteo (numa rara parceria com o poeta J. G. de Araújo Jorge), ele se orgulha, principalmente, de “ser cantado pelo povo”. Prestes a completar 80 anos no próximo dia 24 de junho, o geminiano João Roberto Kelly segue compondo marchinhas. Autor de sucessos carnavalescos do porte de “Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova”, “Maria Sapatão” e “Joga a Chave, Meu Amor”, Kelly colocou na praça sua mais recente criação através da internet, com um vídeo postado no YouTube onde, acompanhado por outros foliões, destila sua verve irônica. “Alô Alô Gilmar” faz troça de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Cabeleira do Zezé (marchinha, 1964) – João Roberto Kelly
Foi o desejo de “desenhar” que levou João Roberto Kelly a compor a sua primeira marchinha de destaque. “Cabeleira do Zezé” nasceu do encontro com um garçom de cabelos longos, que atendia o compositor num dos muitos bares do Rio de Janeiro que ele costumava frequentar. O estilo era uma raridade na década de 60, algo que se tornaria comum na sequência, com a forte influência dos Beatles no país. A intenção de Kelly era, justamente, criar uma caricatura do tal garçom. A música trata o homossexual com deboche e certa agressividade, ameaçando-lhe cortar os cabelos.
Maria Sapatão (marchinha, 1964) – João Roberto Kelly e Chacrinha
Também na linha do deboche em cima das lésbicas estourou a marchinha “Maria Sapatão”, de João Roberto Kelly e Chacrinha, em 1964. A diferença é que a brincadeira era feita com menos agressividade e de forma irreverente. O próprio apresentador de TV foi quem lançou a canção e a entoou diversas vezes em seu programa durante o Carnaval. Chacrinha afirmava que a canção servia para amenizar o preconceito sobre as lésbicas, já que na época elas eram, pejorativamente, conhecidas como fanchonas. A música foi regravada anos depois pela funkeira Valesca Popozuda.
Boato (samba, 1961) – João Roberto Kelly
O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961 de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta triste os infortúnios sombrios do ilusionismo. A música foi regravada por Lana Bittencourt e o próprio João Roberto Kelly.
Rancho da Praça XI (marcha rancho, 1965) – Chico Anysio e João Roberto Kelly
Dalva de Oliveira, dona da linda voz que conquistava súditos por onde desfilava, lançou em 1965 a marcha rancho eternizada como o grande sucesso do carnaval daquele ano, conhecido como o do IV centenário do Rio de Janeiro. Uma dupla de hilários caricaturistas do povo foi a responsável pela composição do feito. Guardavam diferenças entre si: um, cria do berço da cidade; o outro, retirante nordestino vindo de longe, muito longe, mas para ficar, e arrancar risos com várias caras. No entanto, uma semelhança os aproximava e diluía as distâncias geográficas e de formação: o riso, o humor, a maneira de olhar a vida. Com apenas estes ingredientes, João Roberto Kelly e Chico Anysio criaram juntos o ‘Rancho da Praça XI’, bonita homenagem a um dos templos de festa e alegria do Rio de Janeiro.
Fotos: Divulgação.