15 canções arrebatadoras com Maria Bethânia, abelha-rainha da MPB

*por Raphael Vidigal

“sereno doido manso ouriçado: um só e todos.” Wally Salomão

Não é exagero dizer que Maria Bethânia é música em cada fibra, até porque suas interpretações lancinantes nunca pecaram pelo comedimento, numa tênue linha em que é preciso dominar o instrumento para que a entrega não se torne gratuita. E o instrumento da cantora está além da voz, pois é capaz de transformar um simples gesto numa proporção de palavras prenhes de significado. Não por acaso, Maria Bethânia prefere ser chamada de intérprete.

Aí está, dentre tantos, o legado, é bem possível, de maior relevância desta artista ímpar na música popular brasileira, apelidada de “abelha-rainha” após interpretar canção escrita pelo poeta baiano Wally Salomão e musicada pelo irmão Caetano Veloso, “Mel”. Foi Caetano, aliás, quem “batizou” Maria Bethânia, após insistir com a matriarca do clã para que desse à filha o nome da música gravada com enorme sucesso por Nelson Gonçalves e composta pelo pernambucano Capiba.

“De Papo Pro Ar” (cateretê, 1931) – Joubert de Carvalho e Olegário Mariano
Com Olegário Mariano, Joubert de Carvalho fomentou uma das parcerias mais profícuas em termos de repertório e qualidade da história musical brasileira. Inicialmente, o casamento começou como aquele famoso caso em que apenas um dos parceiros sabe que está namorando. Joubert musicou dois poemas de Olegário, “Cai, cai balão” e “Tutu Marambá”, que os apreciou, e, a partir daí, nasceram várias canções. Uma que tem levada das mais gostosas é o cateretê “De Papo Pro Ar”, de 1931, e que exalta a mansidão e preguiça típicas de Macunaíma, vistas de perto em andanças dos dois comparsas. Lançada por Gastão Formenti, foi regravada por nomes célebres como Paulo Tapajós, Ney Matogrosso, Renato Teixeira, Sérgio Reis, Inezita Barroso e Maria Bethânia.

“Boas Festas” (marcha natalina, 1933) – Assis Valente
A canção natalina de maior sucesso nacional em todos os tempos é a triste constatação da solidão feita por um melancólico Assis Valente. Nascido no interior da Bahia, o compositor morava no Rio de Janeiro no Natal de 1932, quando teve inspiração para compor a música. Gravada um ano depois por Carlos Galhardo, com acompanhamento da Orquestra Diabos do Céu, regida e arranjada por Pixinguinha, faria sucesso inúmeras vezes nas vozes de Maria Bethânia, Roberto Carlos, Luiz Melodia e, mais recentemente, o grupo mineiro Pato Fu. Em versos, Assis Valente declara seu pedido não atendido por Papai Noel, pois para ele a “felicidade é brinquedo que não tem”.

“Frevo nº 2 do Recife” (frevo, 1951) – Antônio Maria
Contratado por Assis Chateaubriand como diretor da TV Tupi, Antônio Maria escala rapidamente os degraus da fama e emplaca um fenômeno atrás do outro: colunas, crônicas, programas de TV e rádio, até que chega, por último, a hora e a vez da música. “Frevo nº 2 do Recife”, pertencente a uma composição que totaliza cinco do gênero, é o primeiro a alcançar certa repercussão, em 1951, lançado por Luís Bandeira & Severino Araújo com sua Orquestra Tabajara, posteriormente regravada por Maria Bethânia. Após algumas obras menos conhecidas já terem sido inclusive gravadas por nomes como Aracy de Almeida e o Trio de Ouro, Antônio Maria finalmente começava a sentir o gostinho da fama musical, e dele não largaria mais a colher.

“Preconceito” (samba-canção, 1953) – Antônio Maria e Fernando Lobo
Nem sempre o compositor tem autoridade para definir os rumos que sua canção irá tomar. Pois este é um ótimo indício. Como disse Mario Quintana: “A poesia não se entrega a quem a define”. Escrito por Antônio Maria em parceria com Fernando Lobo, o samba-canção “Preconceito”, de 1953, foi lançado pela musa da dor-de-cotovelo Nora Ney, que pelo atrevimento da letra denominou a partir de então outro fã clube para si. Tomada nos braços dos homossexuais como hino, foi também regravada por Maria Bethânia e Cazuza. Antônio Maria, mesmo sem querer, colocou outra pedra filosofal no centro da música brasileira.

“Negue” (samba-canção, 1960) – Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos
Nascido em Portugal, Adelino Moreira mudou-se ainda criança para o Brasil. E foi dentro de casa que ele recebeu os primeiros incentivos para seguir o ofício que o consagraria, pois o seu pai era um poeta parnasiano. Compositor de clássicos imortalizados por Nelson Gonçalves, como “A Volta do Boêmio”, “Meu Vício É Você”, “Fica Comigo Esta Noite”, e tantos outros, Adelino compôs, em 1960, “Negue”. O desgaste na relação entre Adelino e Nelson levou outro cantor a lançar um de seus maiores sucessos. A música apareceu pela primeira vez na voz de Carlos Augusto. Em 1978, Maria Bethânia seria a responsável por uma emblemática regravação. Em 1983, foi a vez de o grupo punk baiano Camisa de Vênus oferecer uma versão debochada ao sofrimento amoroso do protagonista.

“Fala Baixinho” (choro, 1964) – Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho
Sobre suas músicas, Pixinguinha dizia: “Elas vêm, só isso”. Assim ele veio e soprou a vida, e se foi no mesmo sopro de flauta e saxofone, menos de um ano depois de sua amada companheira Betty, numa cerimônia de batizado. Ainda viva, Betty não sabia que Pixinguinha estava internado no mesmo hospital que ela e lhe visitava de terno e buquê de flores na mão como se viesse de casa.

Antes de morrer, o músico ainda teve tempo de receber homenagens no Teatro Jovem, Museu da Imagem e do Som, Teatro Municipal e na Assembleia Legislativa, com as presenças de Clementina de Jesus, João da Bahiana e outros bambas. A última música foi feita para Eduardo, segundo neto, filho de seu único descendente, Alfredinho, que ele chamou de “Eduardinho no Choro”. Em 1964, Hermínio Bello de Carvalho letrou um bonito choro do compositor, gravado belamente por Maria Bethânia em 1999, com uma determinação implícita: quando lembrar de Pixinguinha, “Fala Baixinho”, que o coração ouve.

“Carcará” (canção, 1965) – João do Vale e José Cândido
Um ano após o início da ditadura militar no Brasil, os movimentos artísticos já se organizavam para protestar contra tal violência. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, com direção de Augusto Boal, o espetáculo “Opinião” foi um marco da resistência do período. Um dos participantes, João do Vale, era um maranhense de Pedreiras, cuja árida experiência no sertão o credenciava a encarnar o nordestino com todas as suas revoltas e medos.

O tom autobiográfico do relato de João, presente na música como um todo, se acentua quando índices de desigualdade social no nordeste são lidos de forma enérgica por Maria Bethânia, que, com gesto e entonação agressiva, dá vida ao “Carcará”, pássaro-título conhecido por sua força e implacabilidade. Fora isso, Ney Matogrosso declarou mais tarde que a interpretação masculina de Bethânia à ocasião foi o primeiro ato cênico de homossexualidade na história da música brasileira.

“A História do Circo” (samba, 1972) – Batatinha
Gravado pela primeira vez em 1954 por Jamelão, o compositor e cantor Oscar da Penha, conhecido como Batatinha, era também um melodista afiado, capaz de, com uma simples caixinha de fósforos, construir a forma perfeita para suas palavras se encaixarem. Lançada por Maria Bethânia em 1972, “A História do Circo” dá uma prova: “Todo mundo vai ao circo/ menos eu, menos eu/ como pagar ingresso/ se eu não tenho nada/ fico de fora escutando a gargalhada”. A segunda e última parte é ainda mais cortante. “A minha vida é um circo/ sou acrobata na raça/ só não posso é ser palhaço/ porque eu vivo sem graça”. Foi regravada por Celso Sim.

“Bárbara” (MPB, 1972) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem registro que fala do amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta por ele e por Ruy Guerra para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos ou preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem em uma combustão repetida pelo discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua, sabendo que no fim da noite serei tua, deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva, acumulando de prazeres teu leito de viúva…”.

“Oração de Mãe Menininha” (samba, 1972) – Dorival Caymmi
“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em 1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de Jesus.

“Explode Coração” (MPB, 1977) – Gonzaguinha
Contestador por natureza, em 1975 Gonzaguinha havia dispensado seus empresários para fundar depois seu próprio selo, Moleque, que também seria o nome do seu álbum de 1977. Nesse ano, “Explode Coração” tornou-se um dos maiores marcos de toda a carreira de Maria Bethânia. Intitulada inicialmente “Não dá mais pra segurar”, a música é um desabafo lento, progressivo, um exercício de confissão e entrega em que o compositor se despe de seus medos e aceita todos os desejos. Em “Explode Coração”, Gonzaguinha se descortina para que a vida entre sem pedir licença.

“Grito de Alerta” (MPB, 1980) – Gonzaguinha
Ao entoar “Comportamento Geral” no programa de Flávio Cavalcanti, Gonzaguinha chocou os jurados, esgotou o disco nas prateleiras e foi censurado pela ditadura militar. Além do espírito combativo, as reuniões na casa do psiquiatria Aluízio Porto renderam-lhe seu primeiro casamento, com Ângela Porto, mãe de seus dois primeiros filhos. O discurso do embate político cedia espaço, em 1980, para um envolvente Gonzaguinha, que, acostumado a ouvir na infância Jamelão, Lupicínio Rodrigues e músicas portuguesas, entregava para Maria Bethânia consagrar um samba-canção de sua autoria, em que discutia as difíceis questões do coração. Deixando de lado a razão, “Grito de Alerta” era uma tentativa sincera de amar de portas abertas.

“É O Amor” (sertaneja, 1991) – Zezé di Camargo
Em 1991, ao gravar o primeiro LP de sua carreira, os irmãos goianos Zezé di Camargo & Luciano lançaram a balada sertaneja “É O Amor”, que rapidamente alcançou o primeiro lugar nas paradas de sucesso, levando a dupla do ostracismo para o estrelato em questão de dias. A música composta por Zezé di Camargo não demorou a chamar a atenção do mercado fonográfico, sendo regravada no ano seguinte pelo grupo de pagode Raça Negra. Mas a surpresa maior aconteceu quando Maria Bethânia a registrou com delicadeza, em 1999, no álbum “A Força Que Nunca Seca”. A intérprete baiana voltaria a fazer movimento parecido em 2019, quando deu voz a “Evidências”, sucesso da dupla Chitãozinho & Xororó.

“O Mundo É Grande” (poema, 2002)
Para celebrar o centenário de nascimento do poeta itabirano, o ator, cantor e apresentador mineiro Thelmo Lins produziu, em 2002, um álbum em homenagem à obra de Drummond, sob a alcunha “Thelmo Lins Canta Drummond”. Com várias participações especiais, o trabalho apresentou poemas musicados por José Miguel Wisnik (“Anoitecer”), Joyce (“Cadeira de Balanço”), Belchior (“Volta”), Milton Nascimento (“O Deus de Cada Homem”), Francis Hime (“Inaugura-se o Retrato”) e Sueli Costa, na faixa que foi o grande destaque do disco pela presença de Maria Bethânia em “O Mundo É Grande”, dos versos: “O amor é grande e cabe/ No breve espaço de beijar”.

“Folia de Reis” (folia de reis, 2014) – Roque Ferreira
Tradicionalmente, é em 6 de janeiro que se desmontam os principais artigos da decoração natalina, como a árvore e o presépio. A data simboliza o dia em que os Três Reis Magos teriam visitado o menino Cristo e oferecido a ele ouro, incenso e mirra. No Brasil, essas ofertas ganharam os tons de fitas coloridas, tambores e muita musicalidade, e se tornou a Folia de Reis, cantada por vários compositores. Em “Meus Quintais”, seu mais recente disco de inéditas, Maria Bethânia resolveu reacender as tradições de um Brasil interiorano e rural, e recebeu de presente do compositor Roque Ferreira a música “Folia de Reis”. Dedicada a Rodrigo, o irmão mais velho de Bethânia, e responsável por recuperar a celebração na terra natal da família, a cantiga saúda: “Em nome dos santos reis/ E do santo filho de Maria…”.

Foto: Jorge Bispo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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