*por Raphael Vidigal
“Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.” João Cabral de Melo Neto
Na linha evolutiva da música sexual brasileira, é possível dizer que, entre Rita Lee e Karol Conka, o funk de Tati Quebra-Barraco, Deize Tigrona e Valesca Popozuda se impôs como ponto nevrálgico. No começo dos anos 2000, Tati foi a responsável por entoar os versos “se eles quer que você mame/ manda eles te chupar”, invertendo a lógica estabelecida pelo universo machista. Valesca Popozuda, intérprete de “Quero Te Dar”, fala de sua experiência: “A liberdade feminina sempre existiu, só que era medrosa. Eu quis libertar as mulheres. Por que não falar do nosso órgão genital?”, questiona a artista.
“Pulsos e camadas sutis que se acumulam, como um pano de fundo misterioso, uma camada de suspense que é liderada por um ponto minimalista, sinuoso, causando uma sensação estranha, um ritmo deslizante, solto, um tanto imprevisível”. Com essas palavras, o pesquisador e jornalista Gabriel Albuquerque, natural do Recife, procura desvendar a marca de um gênero que, não raro, é tachado de pobre, violento e pornográfico. Abaixo, selecionamos alguns funks que obtiveram sucesso ao longo da música popular brasileira, indo do romantismo do funk melody ao linguajar explícito do batidão carioca, com direito até a marchinha histórica que ganhou a voz de Valesca Popozuda.
“Maria Sapatão” (1964) – João Roberto Kelly e Chacrinha
Também na linha do deboche em cima das lésbicas estourou a marchinha “Maria Sapatão”, de João Roberto Kelly e Chacrinha, em 1964. A diferença é que a brincadeira era feita com menos agressividade e de forma irreverente. O próprio apresentador de TV foi quem lançou a canção e a entoou diversas vezes em seu programa durante o Carnaval. Chacrinha afirmava que a canção servia para amenizar o preconceito sobre as lésbicas, já que na época elas eram, pejorativamente, conhecidas como fanchonas. A música foi regravada 50 anos depois pela funkeira Valesca Popozuda, no álbum “Pancadão das Marchinhas”.
“Kátia Flávia, a Godiva do Irajá” (1987) – Fausto Fawcett e Laufer
O universo das histórias em quadrinhos era uma referência nítida e admitida no trabalho que Fausto Fawcett começou a desenvolver na década de 80, quando o termo “performance” ainda não era tão difundido como atualmente. Munido dessas armas e intenções, o compositor carioca criou, ao lado de Laufer, “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, uma personagem peculiar da paisagem urbana, que misturava a malícia, ainda hoje presente no funk carioca, ao papo cabeça relacionado a guerras e mísseis. Não por acaso, a palavra “calcinha” era repetidamente usada, confundindo suas interpretações possíveis. Regravada por Fernanda Abreu, em 1997, a música ganhou videoclipe e um novo fôlego.
“Dança do Viado” (2000) – MC Serginho e Lacraia
Ao longo dos anos, a música brasileira tratou o tema da homossexualidade de diversas maneiras. Um dos primeiros registros conhecidos é “Mulato Bamba”, samba de Noel Rosa composto em 1931, que homenageava Madame Satã, notório transformista e capoeirista da Lapa, temido, inclusive, pela polícia. A composição traz versos como “As morenas do lugar/ Vivem a se lamentar/ Por saber que ele não quer/ Se apaixonar por mulher”. O funk foi o grande expoente da música brasileira a gravar músicas de tom homossexual nos anos 2000, principalmente na voz de MC Serginho, sempre acompanhado pelo dançarino gay que ficou conhecido como Lacraia. “Dança do Viado” foi sucesso da dupla.
“Fico Assim Sem Você” (2002) – Abdullah e Cacá Moraes
Por coincidência ou destino, a dupla Claudinho & Buchecha estava no auge do sucesso quando gravou o disco “Vamos Dançar”, em 2002, que trazia a canção “Fico Assim Sem Você”, de Abdullah e Cacá Moraes. Tristemente, os versos do funk melody se tornaram proféticos quando Claudinho morreu em um acidente de carro, em julho daquele mesmo ano. A música dizia “Amor sem beijinho/ Buchecha sem Claudinho/ Sou eu assim sem você”. Em 2004, Adriana Calcanhotto a repaginou para seu projeto infantil, em que vestia a persona de Adriana Partimpim, e amplificou o sucesso da canção. No mesmo ano, a cantora Roberta Tiepo gravou uma nova versão, para o disco “Alegria, Diversão e Festa”.
“Tremendo Vacilão” (2006) – Mãozinha, Claudia Teles e Sarah Marques
Apelidada pela imprensa de “Kelly Key do funk”, a carioca Perlla virou um fenômeno musical graças à música “Tremendo Vacilão”, de Mãozinha, Claudia Teles e Sarah Marques, lançada em 2006, no seu disco de estreia, que trazia o sugestivo título “Eu Só Quero Ser Livre”. Com apenas 17 anos, a cantora popularizou mais uma canção sobre as desavenças amorosas, mas, desta vez, com foco em uma postura altiva da mulher na relação. Posteriormente, Perlla abandonou o estilo para dedicar-se à música gospel, convertendo-se evangélica. No entanto, logo em seguida, ela voltou a cantar sucessos do funk.
“Piriguete” (2006) – MC Papo
Não é apenas de pesquisadores e jornalistas que o funk produzido nas Gerais tem chamado atenção e despertado curiosidade. O público foi quem mais comprou a ideia. Uma prova é o sucesso nacional alcançado por MC Papo, graças ao hit “Piriguete”. Lançada em 2006, a música grudou na cabeça dos ouvintes com o refrão “Quando ela me vê ela mexe/ Piri, Pipiri, Pipiri, Piri, Piriguete/ Rebola devagar depois desce/ Piri, Pipiri, Pipiri, Piri, Piriguete”, e a coreografia igualmente envolvente. A música ultrapassa 80 milhões de visualizações no YouTube. Um dos precursores do funk mineiro, MC Papo também é responsável pelo hit “BH É o Texas”, de 2015.
“Amor de Chocolate” (2012) – Naldo Benny
O jingle “Chocolate” criado, em 1971, por Tim Maia, cujas alusões ao uso de entorpecentes são frequentemente comentadas, é, sem dúvida nenhuma, a de maior impacto quando se trata de falar sobre o doce na música brasileira. Até mesmo pelo peso que o “Síndico” imprimia às suas canções. O maior cantor de soul do Brasil era claro ao dizer que nada mais servia além de “Chocolate”, na música de mesmo título regravada por Marisa Monte. De maneira bem mais rasa, o funk gravado por Naldo Benny também se apropria do doce para descrever um “Amor de Chocolate”, um dos maiores êxitos de público dos últimos tempos.
“Tá Pra Nascer Homem que Vai Mandar em Mim” (2014) – Wallace Vianna, André Vieira e Leandro Pardal
Valesca Popozuda é uma das personagens mais polêmicas da nova cena cultural no Brasil. Com seu discurso proativo em favor do prazer feminino, é capaz de causar discórdia tanto na ala das feministas quanto na dos machistas, o que lembra a trajetória, em parte, de Leila Diniz (1945-1972), também incompreendida em seu tempo. O certo é que Valesca não esconde seus sentimentos e, muito menos, suas vontades, sejam elas quais forem. Emblema maior desta atitude libertária, a música “Tá Pra Nascer Homem que Vai Mandar em Mim” é um funk lançado em 2014, de autoria de Wallace Vianna, André Vieira e Leandro Pardal e que deixa claro que, nesse caso, é a mulher quem escolhe, seja a cama, o sexo, ou a atividade no mercado de trabalho.
“Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar” (2014) – Pardal, Wallace Viana e André Vieira
No videoclipe de “Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar”, Valesca Popozuda surge em uma oficina de carro pedindo ajuda e vê os mecânicos babarem sobre seu corpo. O universo é outro na regravação de Cida Moreira, que levou ao funk de Pardal, Wallace Viana e André Vieira uma atmosfera de cabaré. A versão de Cida foi concebida para “Um Copo de Veneno”, programa de televisão dirigido pelo fotógrafo Murilo Alvesso para o Canal Brasil. A abordagem das duas intérpretes não poderia ser mais distinta, e é isso o que torna a experiência rica. “É uma música muito engraçada, sempre transgredi as minhas próprias regras”, declarou Cida, que garantiu ter recebido um telefonema elogioso de Valesca.
“Bum Bum Tam Tam” (2017) – MC Fioti
Lançada em março de 2017, a letra do funk “Bum Bum Tam Tam” segue o ritmo da melodia e rebobina trocadilhos de duplo sentido que sempre fizeram sucesso na música brasileira, desde os idos da marchinha “Eu Dei…”, de Ary Barroso, gravada por Carmen Miranda na década de 1930, passando por Genival Lacerda e sua “Severina Xique-Xique”, forró de 1975, até o “Rock das Aranha”, cantado por Raul Seixas nos anos 80. O clipe de “Bum Bum Tam Tam” segue à risca essa trilha e mostra o compositor e intérprete MC Fioti em um harém, rodeado por inúmeras mulheres. Num segundo momento a cena chega ao Brasil, sob o som do refrão “É a flauta envolvente/ Que mexe com a mente/ De quem tá presente/ As novinha saliente”. O clipe supera 1 bilhão de acessos no YouTube.
“Só os Coxinhas” (2018) – Antonio Cícero e Marina Lima
Antonio Cícero é reconhecido como compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor. Ao lado da irmã Marina Lima, ele assinou vários hits da música popular brasileira. Cícero é o autor das letras de “Fullgás”, “À Francesa” (com Cláudio Zoli) e “A Chave do Mundo”, dentre outras. Recém-empossado na Academia Brasileira de Letras, em 2017, o carioca surpreendeu à crítica um ano depois, ao explorar o ritmo do funk em uma nova parceria com Marina. “Só os Coxinhas”, lançada em 2018, fazia troça com o apelido pelo qual as pessoas defensoras das políticas de direita passaram a ser conhecidas após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, operado em 2016.
“Bota Tudo Nela” (2018) – MC Kaio
“O funk mineiro tem um toque espacial, evanescente, atmosférico e fragmentado. Eu diria que é um funk espectral”, define Gabriel Albuquerque, estudioso do gênero, que, em sua fala, faz referência ao uso de um beat (andamento rítmico) conhecido pelo nome de “panela”, “latinha” ou “garrafa”, em músicas como “Viciei Nessa Garota”, de MC Dennin, “Nóis É Bandido Vida Loka”, de MC L da Vinte, e “Bota Tudo Nela”, de MC Kaio, expoentes da nova cena belo-horizontina. O hit de MC Kaio não economiza no vocabulário e dispara: “Mais uma que vai mamar será?/ Só nós que pode tacar, botar tudo na novinha/ E ela perde a linha/ Bota tudo nela”. A música tem 4 milhões de visualizações no YouTube, em um videoclipe produzido por KondZilla.