*por Raphael Vidigal
“Quando eu dou risada não é só complacência com o seu estilo, mulher diabólica.
As feras que comem a favor do nada.
Vamos filmar esta parede com uma estranha fera desenhada?” Wally Salomão
Sátiro, selvagem, gaiato. Com essas palavras, alguns amigos procuram defini-lo. Mas é impossível. Há também os que preferem as atribuições propícias ao nome: MACALÍSTICO, MACALÉA, JARDS JACARÉ. O fato é que Jards Macalé é um mestre na arte de não atender as expectativas. Um dos princípios de criação do músico que jamais se etiquetou (é tão difícil decifrá-lo que ele chegou a ser chamado de “maldito” durante uma época) sempre foi a liberdade. Parceiro de poetas como Wally Salomão, Torquato Neto, Capinam e Duda Machado, ele musicou versos de Ezra Pound e Gregório de Matos. Suas canções estão cada vez mais atuais. A recente biografia, lançada em 2021, talvez traga a melhor pista sobre sua personalidade. Diz o título: “Eu Só Faço o Que Quero”. E ponto.
“Gotham City” (vanguarda, 1969) – Jards Macalé e Capinam
Apreciador de histórias em quadrinhos, o irrequieto Jards Macalé subiu ao palco com uma longa bata preta, enfeitada com um medalhão no peito, como se estivesse ali para anunciar o apocalipse, o que combinava com sua barba hippie. A reação do público do Festival Internacional da Canção de 1969 à estranheza proposital e provocativa de “Gotham City”, de Capinam e Macalé, foi “uma vaia consagradora”, nas palavras do músico. “Chegamos desconhecidos e, no dia seguinte, éramos famosos”, debochou. A faixa abordava os terrores da ditadura.
“Só Morto” (rock, 1970) – Jards Macalé e Duda Machado
Lançado em um compacto ao lado da faixa “Soluços”, o rock “Só Morto” precedeu o primeiro álbum de Jards Macalé, gravado com Lanny Gordin e Tutty Moreno em 1972. Parceria com Duda Machado, a música seria revista pelo cantor no disco “Jards”, de 2011. Com o estilo experimental de Macalé, dá o prenúncio da “morbeza romântica” que ele inauguraria com Wally Salomão nos anos 1970, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. Os versos condensados de “Só Morto” estilhaçam imagens como num intrincado jogo de palavras ao ouvinte.
“Soluços” (rock, 1970) – Jards Macalé
Nos últimos anos, Jards Macalé experimentou um processo de redescobrimento de sua obra, que, na década de 70, foi tachada de “maldita” pelos engravatados da indústria fonográfica, incapazes de compreender e, ao mesmo tempo, ávidos por etiquetar toda aquela liberdade criativa. Em 2020, Emanuelle Araújo lançou uma homenagem em disco ao artista. A música que a tirou do lugar foi “Soluços”, que Macalé gravou em seu primeiro compacto, de 1970, ao lado da não menos incisiva “Só Morto”. Como não poderia deixar de ser, “Soluços”, dos versos “Quando você me encontrar/ Não fale comigo/ Não olhe pra mim/ Eu posso chorar”, está em “Quero Viver sem Grilo: Uma Viagem a Jards Macalé”, ao lado de outras nove canções.
“Movimento dos Barcos” (canção, 1971) – Jards Macalé e Capinam
Jards Macalé sempre fez questão de dizer que nunca foi tropicalista, embora a mídia tenha insistido em um rompimento dele com o movimento na década de 1970. A verdade é que o artista manteve uma postura musical muito particular. Seja como for, em 1971, ele compôs com Capinam um de seus únicos sucessos populares, “Movimento dos Barcos”, uma canção ralentada, que versava sobre desilusões, em meio ao endurecimento da ditadura militar. A música foi lançada por Maria Bethânia, no espetáculo “Rosa dos Ventos”, e regravada por Macalé.
“Let’s Play That” (vanguarda, 1972) – Jards Macalé e Torquato Neto
Essa é uma canção-símbolo do experimentalismo de Jards Macalé, em que o músico distorce imagens e fonemas a partir da letra do poeta Torquato Neto. A mistura de linguagens se dá no campo verbal, com expressões em inglês e português, e, sobretudo, pela metáfora da liberdade. “O Poema de Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade é o ponto de partida da parábola de “Let´s Play That”, e a banda não poupa esforços. Lançada originalmente no LP de 1972, em que Macalé atuou ao lado de Lanny Gordin e Tutty Moreno, ela foi revivida em 1983, quando batizou o álbum dividido com o percussionista Naná Vasconcelos.
“Vapor Barato” (canção, 1972) – Jards Macalé e Wally Salomão
Aquela geração ameaçada e violentada pela ditadura não se dobrou à tirania e truculência dos militares e encontrou, na experimentação de drogas proibidas e alucinógenas e na prática do sexo livre e desprovido do sentimento de posse, formas de resistir aos dramáticos tempos de chumbo. É dessa vivência que fala a música de Jards Macalé e Wally Salomão, dois dos artistas mais inventivos e originais do Brasil, em “Vapor barato”, cujo título é uma alusão à maconha. A desilusão com o momento também é refletida nos primeiros versos, com referência direta ao “casaco de general cheio de anéis”. Lançada no histórico show “FA-TAL – Gal a Todo Vapor”, em 1972, foi regravada pelo grupo O Rappa em ritmo de reggae.
“Pano pra Manga” (samba, 1983) – Jards Macalé e Xico Chaves
Um dos mais inventivos e originais compositores do Brasil. Assim é Jards Macalé, cuja seriedade da formação artística é combinada com uma franca postura de irreverência e insubmissão. A modos, a princípios, a ditos feitos. Exceção feita, obviamente, aos ditados brasileiros. Macalé compôs e lançou com Xico Chaves em 1983 o samba “Pano pra manga”, em que, além do título, aparece o ditado “pinta e borda”, mais propício impossível à postura de Macalé na música brasileira. Dentre os muitos artistas que pontificam com sabedoria o cancioneiro nacional, é imprescindível a menção honrosa a um de seus pesquisadores mais constantes e incansáveis, o compositor, ator e apresentador Rolando Boldrin. Pessoas que não dão um pingo sem nó na arte!
“Coração do Brasil” (samba, 1998) – Jards Macalé
Jards Macalé, um dos mais irreverentes e criativos compositores nacionais, com trajetória incomum dentro deste cenário, apelidado até, em certo momento e a contragosto, de “maldito”, prestou uma homenagem à identidade brasileira a seu modo, cinco anos antes de encampar o mote “Amor, Ordem & Progresso” para a bandeira, em 1998. “Coração do Brasil” é um samba, lançado no álbum “O q faço é música”, com um único verso de única palavra repetido exaustivamente: “Coração…/ Ah coração!/ Coração…/ Ah coração…”. A música recebe o acompanhamento da Velha Guarda da Portela, de Monarco e Cristina Buarque nos coros e vocais, além de Ovídio e Gordinho na percussão, e é dedicada ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos ícones do Cinema Novo. Condensa em seu bojo um misto de lamento e exaltação.
“Trevas” (vanguarda, 2018) – Jards Macalé a partir de poema de Ezra Pound
Vértice principal do movimento modernista na poesia norte-americana do século XX, o controvertido poeta Ezra Pound (1885-1972) é uma das referências do disco “Besta Fera”, lançado por Jards Macalé em 2019. Macalé partiu do “Canto I”, de Pound, traduzido por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, para criar “Trevas”, que foi eleita para ganhar um videoclipe. O curioso é que em “Let´s Play That” (1994), Macalé adaptou “Luz”, ao partir de outro poema de Pound. “O mundo em 2019 está mais para trevas do que para luz. Nunca ouvi se falar tanto nessa palavra. Mas a treva também é o desconhecido. Pode haver esperança, a luz do fim. Até porque não adianta virem todas as forças passadistas. A História com agá maiúsculo está do nosso lado”, justifica.
“Besta Fera” (choro, 2018) – Jards Macalé e Gregório de Matos
Um animal tão horripilante que as pessoas são incapazes de descrevê-lo. O torso é de cavalo, mas, como a mula sem cabeça, acima do pescoço não existe nada, apenas o vazio. “É a cara da escuridão, pode ser qualquer um de nós”, afirma o cantor e compositor Jards Macalé, cujo mais recente disco, o primeiro de inéditas em duas décadas, recebe o nome da criatura aludida: “Besta Fera”. Antes de tudo, porém, Macalé conheceu a expressão no poema “Aos Vícios”, de Gregório de Matos (1636-1696), escritor baiano conhecido como Boca do Inferno. Ao editar o texto, “para ficar o essencial”, o músico criou a canção cujo título foi pinçado dos versos: “que a mudez canoniza bestas feras”. “Estamos em plena época de bestas feras”, observa Macalé, que não deixa de notar a triste atualidade de um poema escrito no século XVII.
*Bônus
“Contrastes” (samba, 1973) – Ismael Silva
Ismael Silva foi um bamba de primeira qualidade, fundador da primeira Escola de Samba do Brasil, a Deixa Falar, que incentivaria o surgimento das posteriores. Parceiro de Noel Rosa em “A Razão Dá-se a Quem Tem”, e de Nilton Bastos na clássica “Se Você Jurar”, autor da dolorida “Antonico”, gravada por Elza Soares e Gal Costa, ele compôs, em 1973, o samba “Contrastes”, uma preciosidade que seria resgatada pelo olhar atento do irrequieto Jards Macalé, no ano de 1977. A canção deu título ao álbum mais elogiado do artista, que recebeu a pecha de “maldito” da indústria fonográfica por seu comportamento independente. Com perspicácia, a letra de “Contrastes” é um apanhado das contradições do Brasil: “Existe muita tristeza/ Na rua da alegria/ Existe muita desordem/ Na rua da harmonia/ Analisando essa estória/ Cada vez mais me embaraço/ Quanto mais longe do circo, mais eu encontro palhaço…”. Ela foi regravada por Luiz Melodia.
Foto: José de Holanda/Divulgação.