Zizi Possi canta Gilberto Gil, Caetano Veloso e Rita Lee em novo espetáculo

*por Raphael Vidigal

“O que queria era encontrar no mundo real a imagem sem substância que a sua alma tão constantemente baralhava.” James Joyce

As lágrimas percorriam o rosto da criança, enquanto a Verônica limpava o sangue da face de Cristo, com o corpo envergado pelo peso da cruz. A imagem da procissão marcou para sempre Zizi Possi, que guarda intacta essa primeira lembrança musical. “Nossa, eu chorava muito de emoção!”, confessa a cantora. O tempo transcorreu em seu estado puro – muitas vezes líquido e rarefeito –, e Zizi manteve uma característica daquela pequena.

“De todas as maneiras, me toca quando a música não é óbvia, quando melodia e harmonia são lindas, e quando a poesia expressa alguma verdade, daquelas que eu poderia assinar embaixo”. É esse farol que a guia no espetáculo que ela apresenta no próximo dia 15 de junho em Belo Horizonte, na reestreia do projeto “Uma Voz, Um Instrumento”, idealizado pelo produtor e gestor cultural Pedrinho Alves Madeira.

Caminhante. O poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939) vaticinou que “não há caminho/ o caminho se faz ao caminhar”. Zizi Possi compreende bem o aforismo. Os 45 anos de carreira fonográfica, iniciada em 1978, com o lançamento do LP “Flor do Mal”, revelaram ao Brasil uma voz aguda e afinadíssima, capaz de adensar as belezas contidas numa peça obscura de Sérgio Sampaio (1947-1994), “Meu Pobre Blues”, em que ele alentava ser gravado por Roberto Carlos, ou na dor lancinante de “Pedaço de Mim”, presente recebido de Chico Buarque, com quem ela cantou em dueto, e de quem também gravou a inebriante “O Circo Místico”, parceria com Edu Lobo.

Zizi recebeu um telefonema do produtor Sérgio Carvalho, que morreu em 2019, aos 69 anos, com o seguinte recado à queima-roupa: “Chico queria que eu cantasse uma música com ele”. A reação foi de autoengano, e a cantora entrou num diálogo interno, difícil de acreditar. “Calma Zizi. Isso não quer dizer nada. Muitas pessoas gravam faixas que acabam não entrando no disco. Vai, dê o melhor de si, mas não cultive nada além do momento”.

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Ela garante que seguiu essa “voz de prudência” interior. Porém, logo na sequência, admite: “Cantar frente a frente com Chico… Bem, aí a coisa pegou. Sou tímida ao extremo, e ele também. Mal olhávamos um para o outro, e assim nos entendemos cantando. Foi lindo!”. A gravação comovente e memorável para “Pedaço de Mim” comprova as palavras da entrevistada.

Repertório. “Há uma linha fina de percepção que me mostra aquilo que me toca e eu ‘preciso’ cantar, e o que me toca mas eu prefiro ouvir”, sublinha Zizi. No espetáculo “Caminhos”, Zizi não está sozinha. Ela é acompanhada pelo pianista Daniel Grajew, egresso do bem-sucedido show anterior, “À Flor da Pele”, e Mário Manga, ícone da Vanguarda Paulistana, que comanda violoncelo e guitarra. O repertório condensou canções que também estavam presentes em “INS-PIRAÇÕES”, cuja estreia próxima à pandemia inviabilizou sua continuidade – agora posta em prática com “Caminhos”.

Zizi se derrete em elogios aos companheiros de palco, a quem oferece palavras generosas como “beleza rara”, “inspirador e surpreendente” e “criatividade”. “Para mim, o fato de tê-los encontrado soa como portas abertas para uma atualização de mim mesma. São ‘Caminhos’ novos e deliciosos de desvendar e percorrer”, agradece. Rita Lee, Lenine, Paulinho Moska, Zélia Duncan, Marcelo Jeneci, Zeca Baleiro, Ana Carolina, Gilberto Gil, Ivan Lins e Caetano Veloso integram o programa do espetáculo.

Essência. De Caetano, a intérprete pinçou “Podres Poderes”, lançada em 1984, no contexto da abertura política que visava pôr um fim definitivo à ditadura militar. Na época, o compositor também se via tragado pela ascendência do rock, que contagiava a juventude. “Bem, ‘Podres Poderes’, no meu entender, não fala apenas de política. Há uma descrição de comportamentos humanos, demasiado humanos”, pondera Zizi, segundo ela, “brincando com Nietzsche”, em referência ao importante filósofo alemão.

“Entra século, sai século… Entra milênio, sai milênio… Alcançamos a Lua, Marte… Plutão! Descobrimos a penicilina, a cura da varíola, da tuberculose… Atravessamos o planeta pelo ar, pela terra, pelas águas… Mas essencialmente, infelizmente, continuamos sempre os mesmos, repetindo o ciclo do poder ainda que isso custe a honra, os princípios, o bem dos outros. É disso que a música fala pra mim”, sustenta.

Companhia. Zizi já admitiu, em mais de uma oportunidade, que há anos convive com a depressão. Durante esse tempo, ela ainda enfrentou problemas de coluna que a obrigaram a viver à base de morfina, tamanha a intensidade da dor. “Nesse momento já fiz uma amizade meio que forçada, mas inevitável, com a depressão. Virou meio que irmã gêmea, já que não desgruda do meu pé. A diferença é que aprendi que ela é ela, e eu sou eu. Então, quando ela vem de mansinho, quase imperceptível, reconheço sua presença e tomo providências químicas, psicológicas e espirituais”, ensina.

Tanto é verdade que a depressão não imobiliza mais Zizi. “Talvez eu grave algumas músicas este ano, mas optei por me apresentar ao vivo. Na verdade, minha vida toda tem sido assim: fazendo shows. Se fico muito triste, bora pegar a estrada e cantar!”. Como dizia aquele provérbio grego, que tratava sobre a comunicação com o divino: “Quem canta, seus males espanta”. Basta ouvir Zizi para que o som vire transcendente.

Serviço.
O quê. Zizi Possi apresenta “Caminhos” em “Uma Voz, Um Instrumento”
Quando. No próximo dia 15 de junho (quinta), às 21h
Onde. Centro Cultural Unimed-BH Minas (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. De R$40 (meia) a R$80 (inteira) pelo www.eventim.com.br ou na bilheteria do teatro

Foto: Danilo Borges/Divulgação.

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Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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