“Cabaré Coragem”, do Grupo Galpão, busca redenção da vida pela arte

*por Raphael Vidigal

“Ó vós que nos dizeis e às vossas filhas
que é feio abrir as pernas pra viver,
trazei primeiro um prato de lentilhas
porque moral, somente após comer.” Brecht

Um bando de maltrapilhos se mistura a transeuntes que se estapeiam pelas migalhas de um imponente e obsceno senhor. Não estamos falando da realidade, mas de uma peça de Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo alemão que inspirou o Grupo Galpão em sua primeira montagem, na década de 1980, e, agora, na mais recente. “Cabaré Coragem” pode ser entendido como um espetáculo de celebração, de resistência, de alívio e obstinação, mas é, sobretudo, um ato de redenção, que fica explícito em cada linha e cada gesto cênico levado ao palco – em que tudo está conectado e nada é por acaso. Aí está um dos grandes trunfos dessa montagem: as intersecções que ela traça.

A história de fundo, primeiro, conversa com a própria trajetória do grupo. Artistas mambembes que lutam pelo pão de cada dia em um cenário adverso, decididos a transformar o ofício em exercício lúdico – e vice-versa, ou ao contrário. Se hoje o Galpão está consagrado como o mais importante grupo teatral de Minas Gerais, possivelmente do Brasil, com repercussão internacional e apresentações nos teatros mais relevantes do mundo, sua origem se deu na rua, especificamente na Praça Sete, fiel a uma tradição popular que não se abandona em “Cabaré Coragem”, dirigido por Júlio Maciel, com Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e a lendária Teuda Bara – que detém este lugar – no elenco.

Há uma atmosfera montada para imergir o público naquele ambiente, que literalmente adentra e pode interagir com o cenário, por exemplo na forma de um bar conhecido como gangorra – essa, aliás, é mais uma imagem que retornará no contexto da peça, como tantas outras. Podemos intuir uma relação com as criaturas atormentadas e miseráveis de dois filmes do sueco Ingmar Bergman: “Noites de Circo” (1953) e “O Rosto” (1958), apontados como os de compleição mais expressionista do cineasta, e que acompanham as desventuras de artistas circenses. O tom das personagens de “Cabaré Coragem” é burlesco, numa evidente aproximação com o universo de Cida Moreira, cantora que melhor soube interpretar a estética do cabaré no Brasil. Pois não foi sem motivo que ela e Ernani Maletta participaram de experimentos cênicos da peça.

Do repertório de Cida, a trupe pescou canções de Brecht (a quem ela dedicou disco em 1988); se valeu da tragicômica “Singapura”, de Eduardo Dussek, que empresta nome à personagem de Inês Peixoto; a impagável versão para “Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar”, da funkeira Valesca Popozuda; e, ainda, apropriou-se da mordaz “Tango dos Açougueiros Felizes”, poema do surrealista francês Boris Vian (1920-1959), musicado pela cantora e atriz belo-horizontina Letícia Coura, que determina o final, à la “Bacurau”, da madame vivida na peça por Teuda Bara – e sempre salta aos olhos a interpretação stanislavskiana da atriz em meio a um bando de atores guiados pelo distanciamento brechtiano, o que acrescenta uma nova camada de complexidade, e de inerente contradição ao conjunto.

Como a música tem função narrativa determinante no espetáculo, outro autor incontornável é Caetano Veloso que, durante a Tropicália, resgatou do ostracismo a lancinante e dramática, impossivelmente kitsch, “Coração Materno”, de Vicente Celestino, de letra quase inacreditável: um filho que leva a sério a provocação da amante e arranca o coração do peito da própria mãe – coração que vai ganhar vida própria e se comunicar com o carrasco (isto, é bom lembrar, na década de 1950, quando a canção foi lançada). Tão surrealista, ou mais, quanto o poema de Boris Vian.

A música tem o seu sentido renovado ao surgir nos lábios de uma boneca manipulada por um ventríloquo, com alusões à Brecht e à contemporaneidade – movimento que conduz toda a narrativa de “Cabaré Coragem”, como duas cordas paralelas que comandam a mesma cortina do teatro. Caetano e Brecht se reencontram no número em que Teuda se identifica como Mãe Coragem, uma das mais célebres personagens do dramaturgo alemão, e dá voz a “Mamãe Coragem”, canção do baiano gravada por Gal Costa no LP “Tropicalia ou Panis et Circensis”, naquele interminável ano de 1968…

O elogio à fantasia, ao ilusório, à dúvida, enfim, ao que se constitui como teatro, entendido em seu aspecto mais amplo (teatro da vida; teatro das aparências; teatro de marionetes), e que conduz as nossas relações político-sociais e de afetividade, é uma constante ao longo desta peça musical que não propõe o divertimento puro, alienado, e nem se ressente dele, que acontece em meio e por causa mesmo das reflexões que habilmente insere no âmago de esquetes irresistíveis, bem construídas e redondas: seja no encontro dos acrobatas, em que o corpo do outro reforça a ideia de amizade; no canto entoado e emocionado de uma canção em espanhol sobre a liberdade; ou na subversão de inocentes piadas em frases de cunho revolucionário, logo inconformadas.

Existe muito mais a ser tratado sobre “Cabaré Coragem”, que não se esgota em apontamentos nem conclusões. Há o viés catártico, imponderável, contido nessa palavra “coragem”, em tempos amedrontadores – e em que nos querem amedrontados –, e vulneráveis, mas permanece, talvez pairando acima destas questões outras, uma espécie de redenção, pela arte, de uma vida injusta e miserável; ou um respiro aliviado.

Foto: Mateus Lustosa/Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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