Walter Benjamin e Mario Quintana: a narrativa é sempre poética

*por Raphael Vidigal Aroeira

“A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação.” Walter Benjamin

É óbvio, a ponto de esbarrar no nosso nariz, o que separa o ensaísta e teórico alemão Walter Benjamin (1892-1940) do poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994), e nessa frase tudo já está dito, ao menos aparentemente. No entanto, por detrás das cortinas, algo se revela de implícito, como a perna que surrupia debaixo da saia um olhar atrevido.

Em seu célebre estudo sobre “O Narrador”, Benjamin recorreu a um relato “dos mais secos” – em suas próprias palavras – de Heródoto acerca do antigo Egito para cunhar essa imagem: “Ela se assemelha a essas sementes de trigo que, durante milhares de anos, ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides, e que conservam até hoje suas forças germinativas”. Como desconfiam até mesmo os incautos, a metáfora é um dos recursos prediletos de poetas de todas as linhagens, dada sua extraordinária capacidade de concisão.

No início da reflexão, Benjamin salienta que “Heródoto não explica nada”. Tal constatação talvez seja a chave da aproximação que propomos entre a ideia central de narrativa que o alemão sustenta e a essência da palavra poética, aquela que menos diz do que mostra, como uma perna que se insinua por debaixo da saia. Indagando seu interlocutor, Quintana escreveu, no livro “A Vaca e o Hipogrifo”, de 1977: “Mas, afinal, para que interpretar um poema? Um poema já é uma interpretação”. Prossegue Benjamin: “Metade da arte narrativa está em evitar explicações”, neste aforismo repleto do dom da palavra poética.

Essa ausência de fechamento de sentido em que ambos – poema e narrativa – se fiam, ao desviar e, ao mesmo tempo, ultrapassar a conclusão peremptória, não desemboca, sobremaneira, na inutilidade que outro poeta, o pantaneiro Manoel de Barros (1916-2014), tanto entoou. É necessário ver a questão por outra fresta. Segundo Benjamin: “Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”.

Para Quintana, “um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!”, esclarecendo que essa “utilidade” não é a do utilitarismo do mundo mercantilista, mas, antes, pertence ao universo íntimo e subjetivo do ser humano, é da ordem do essencial. Logo, um aspecto fundamental é descolar a narrativa, e, de nenhuma maneira, permitir que ela se submeta à “realidade”, melhor compreendida, no dizer de Benjamin, como o império da “informação” que o sistema burguês-capitalista impôs como hegemônico no tratamento dos signos.

Nesse ponto, Quintana foi preciso e cortante como uma lâmina afiada: “O fato é um aspecto secundário da realidade”. Ao advogar pelo poder da narrativa em detrimento da informação, Benjamin concluiu: “A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”. Pleno adágio da prevalência poética, que também comparece quando ele afirma que o interlocutor da narrativa “é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”.

Benjamin afirma que a narrativa teria origem artesanal, gesto que, novamente, a aproxima da poesia e sua escolha minuciosa de palavras, sonoridades, sentidos. Ainda a perspectiva da eternidade, que só se conquista através da morte, ponteia no horizonte narrado e poetizado. “Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível”, escreve o teórico alemão, que, não obstante, assume os ares gauchescos do poeta Quintana, quando compõe a seguinte frase: “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta”.

Se encontrarem algo parecido em “A Vaca e o Hipogrifo”, não se assustem. A narrativa poética suspende as limitações de tempo e espaço, numa tensão saborosa, e, porque não dizer, inevitável.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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